A Indústria de automóveis e a reindustrialização do país

Dia 25 de maio, no evento dedicado ao Dia da Indústria a que fomos convidados e comparecemos, anunciou-se que a produção de carros populares será incentivada com vistas à reindustrialização do Brasil. Isso nos faz pensar: será que o Ford Ka, um excelente carro popular que saiu de linha em 2021 representando uma participação de cem mil automóveis vendidos ao ano, terá seu espaço no mercado ocupado por algum outro modelo? Não cabe aqui discutir a posição do fabricante, mesmo porque isso já foi discutido em outra matéria neste mesmo espaço (leia aqui).

Quem preencherá o espaço de mercado do Ford Ka, que vendia em média 100 mil carros/ano? Não teremos respostas (Foto: Lucca Mendonça)

Essa pergunta, sobre o espaço do Ford Ka no mercado, ficará sem resposta. Como visto em outra matéria, o automóvel é o bem mais dependente de crédito do mercado e este está bastante contraído, enviesando qualquer método estatístico. Outras questões, porém, podem ser discutidas. A primeira diz respeito à validade de priorizar a indústria de automóveis como meio de reindustrializar o Brasil. A segunda tem a ver com a probabilidade de dar certo.

Sim, o automóvel é o bem mais complexo produzido em série no mundo. Há outros mais complexos como os aviões, mas eles não se podem considerar como produzidos em escala. Por causa disso, a indústria de automóveis suscita a instalação de uma intrincada cadeia de fornecimento que, por sua vez, torna competitiva a fabricação de outros bens.

Automóvel é o produto feito em série mais complexo de se produzir (Foto: Chevrolet/divulgação)

Esse efeito multiplicador vem de que a indústria de automóveis enseja ganhos de escala em itens que vão dos parafusos aos dispositivos eletrônicos que, por sua vez, tornam-se baratos o suficiente para que outros bens como tratores e até mesmo aviões possam-se produzir no mesmo ambiente. De forma mais técnica, a indústria de automóveis forma um cluster que viabiliza outros clusters, dando diversidade ao parque industrial do país.

É então que começamos a nos debater com um dilema. Para formar o cluster, é preciso que a cadeia de suprimentos seja internalizada. O programa Inovar-Auto do início da década passada fez justamente o oposto, levando o índice de nacionalização de volta aos anos 1950, antes da atuação do GEIA (Grupo de Estudos da Indústria Automobilística), de Juscelino. Hoje, importa-se de tudo, desde parafusos a rolamentos e, principalmente, dispositivos eletrônicos. Até mesmo bancos e peças de acabamento podem vir de fora, deixando seríssimas dúvidas acerca de os clusters virem a renascer como pretende o governo.

Baterias 12V são um dos poucos componentes que quase sempre são nacionais nos carros feitos no Brasil. Pneus, também (Foto: Lucca Mendonça)

Um cluster precisa, antes de tudo, ter um ambiente favorável e isso passa pela infraestrutura, pela facilidade de transporte, pelo fornecimento constante e confiável de energia e pela capacidade humana, seja de execução, seja de desenvolvimento de produtos. Desde os anos 1980 que se vem competindo para trazer indústria para este ou aquele estado, para este ou aquele município. Hoje, veem-se carros basicamente importados a serem montados em rincões afastados, até inóspitos.

Bom exemplo: o Audi Q3, apesar do selo de produto nacional, não trazem praticamente nada de componentes brasileiros na sua construção (Foto: Audi/divulgação)

Para isso, a política mais usada sempre foi a renúncia fiscal, que não se sustenta para sempre. Algum dia, ela tem de cessar, criando uma indústria itinerante. Na medida em que a indústria viaja, as vantagens competitivas esvaem-se. É a mão de obra que não acompanha, obrigando a contratar trabalhadores menos profissionalizados; é a distância entre elementos da cadeia que tende a aumentar, elevando os custos de transporte.

Impedir a guerra fiscal há de ser essencial para que o ambiente deixe de se atomizar artificialmente, quem sabe, concentrando-se geograficamente para aprimorar-se, elevando a competitividade da cadeia. A concentração espacial da indústria não pode empobrecer as demais regiões, ou seja, o sistema tributário necessita considerar a distribuição de recursos também por área, não somente pelo número de habitantes.

Seria ingênuo demais imaginar que somente o nosso mercado seja capaz de absorver o número de automóveis capaz de dar escala e competitividade à nossa indústria de automóveis. É preciso exportar e, para isso, há de se financiar o adquirente externo, pois a dependência de financiamento não se restringe ao mercado brasileiro. Talvez seja esse o maior obstáculo para se transpor. É que o brasileiro não entende que financiar o comprador externo traz recursos para nossa indústria e interpreta a concessão de crédito como “doação” ao estrangeiro.

Apesar de tudo, é preciso exportar (Foto: reprodução/portaldaindustria.com.br)

Existe até uma aversão política ao financiamento de exportações. Prova disso é que, segundo Aloízio Mercadante, presidente do BNDES, há quarenta projetos de lei no congresso tentando evitar que o banco assuma as funções de exim bank (banco de exportação e importação). Sem isso, não há como viabilizar o crescimento da produção realmente nacionalizada.

Resumindo: sim, a indústria de automóveis parece ser motor para reindustrialização do país, só que ela deve ser precedida por uma reforma tributária que impeça a guerra fiscal. Ao mesmo tempo, é preciso fazer ver aos nossos políticos, acostumados com a exportação de commodities somente, que exportar bens de maior valor agregado passa forçosamente por conceder financiamento externo.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade do seu autor, e não necessariamente reflete a opinião do Carros&Garagem.
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.