(opinião) E a canoa da Ford virou, por deixá-la virar…

Há cento e dois anos que a Ford chegou ao Brasil como montadora. Primeiro, CKD (complete knoked down, ou completamente desmontado); depois, fabricante; e daqui para a frente, importadora. Em 2019, fechou a planta de S. Bernardo do Campo, onde outrora montava caminhões. Agora, vai deixar de produzir aqui, fechando todas as plantas. O que aconteceu?

O Ka, quinto modelo mais vendido no país em 2020, foi a principal perda dessas mudanças (imagem: Ford/Divulgação)

Abaixo o senso comum!

Não há nada que me irrite mais do que o senso comum. Trata-se da expressão máxima da falta de escrutínio de um povo. É o senso comum que faz pensar que a cegueira é escura, ou que a surdez é silenciosa; também que a mulher é frágil, ou que negros, quando não sujam na entrada, sujam na saída. Quando o que se repete é verdade, passa do senso comum à sabedoria popular, só que a voz do povo não tem nada a ver com a voz de Deus. Por causa disso é que, ao atribuir a saída da Ford ao “Custo Brasil”, o presidente da Anfavea não fez outra coisa que reproduzir o senso comum, portanto, longe da verdade.

Há quarenta anos que o Brasil vem fechando a torneira e abrindo o ralo da acumulação nacional de capital. A lei das S. A. (6404/1976) desobrigou as empresas de qualquer porte ou qualquer número de sócios de serem S. A., bem como tirou a obrigação de contar com uma parcela de sócios nacionais. Até 1985, toda a cadeia produtiva da indústria de automóveis tinha-se revertido de sociedades anônimas com participação de brasileiros para sociedades limitadas sem investidor nacional algum.

A partir de então, as empresas estrangeiras puderam simplesmente fechar as portas e deixar nosso parque sem ter de recomprar ações, ou sequer prestar contas de todo o lucro que amealharam no país. Estabeleceu-se um relacionamento perverso, até sádico, entre essas empresas e o Estado. Elas passaram a fazer exigências, muitas vezes descabidas, sob a ameaça de “ir embora”.

Não cobramos na entrada e abrimos a porta na saída.

Ao mesmo tempo, a Coreia, ao contrário do Brasil, obrigava todas as empresas, com capital aberto na origem, que pretendesse atuar lá a abrir seu capital domesticamente, fazendo com que se sentissem na obrigação de demonstrar lucros e não maquiar prejuízos. Mais que isso, tornando-as perenes, pois abandonar o país obrigaria a matriz a comprar todas as ações dos sócios locais. Em termos técnicos, o Brasil baixou o custo de abandono, também conhecido como custo de saída, enquanto a Coreia aumentava os seus. A expectativa de ser caro sair fez com que as empresas pensassem duas vezes ao entrar, obrigando-as à máxima eficiência para justificar o investimento. No Brasil, opostamente, baixando-se o custo de saída, empresas vêm, empresas vão ao sabor da conjuntura internacional. Quando vêm, não investem porque podem sair a qualquer momento sem ônus. O Brasil tornou-se um país de aluguel – e barato.

O custo-Brasil virou pano de limpeza.

Foi nessa ocasião que se cunhou o termo “custo-Brasil” como o grande culpado pela ineficiência de empresas que não tinham a menor intenção de fincar pé no país, porém, de chantagear o Estado com a perspectiva do desemprego.

A figura “custo-país”, que integrou com posição de destaque o senso comum, passou pano para decisões equivocadas como produção do Maverick’s e a manutenção do motor Renault no Escort e família, ou de produzir o Del Rey e não o Sierra, que foi para a argentina, desembocando na Autolatina, promovendo queda ainda mais abrupta na participação no mercado e, se não fosse a separação, provavelmente a marca do oval azul já se teria escafedido.

O SUV EcoSport foi uma das vítimas do encerramento da produção nacional de veículos (Imagem: Ford/Divulgação)

Alguns modelos como o Ka e o Fiesta deram um certo alento à marca, que, a exemplo da VW com o Fox, deixaram a capacidade de criar algo do zero, tornando-se verdadeiros centros de maquiagem de modelos, como foi o caso da EcoSport, até R$30.000,00 mais cara que o Fiesta que lhe cedeu a plataforma, transformando-se num sucesso mundial. Aos poucos, a marca foi perdendo o glamour. Nem mesmo modelos de respeito como o Fusion tiveram lugar nas nossas linhas de montagem. Tudo leva a crer que a saída já estivesse programada há mais de uma década, faltando exclusivamente a oportunidade de menor custo de saída possível.

A reforma trabalhista que, pela propaganda oficial, traria investimentos e emprego de volta ao Brasil, abriu ainda mais o ralo, ou seja, diminuiu o custo de saída, consequentemente, aumentou o poder de barganha perante o Estado, graças à terceirização em massa atrelada ao enfraquecimento dos sindicatos. Isso ficou claríssimo com a extinção da divisão de caminhões e o fechamento da fábrica de S. Bernardo do Campos.

COVID, do limão à limonada.

A COVID, com a paralisação das atividades, os subsídios governamentais de até 50% sobre a mão de obra propiciaram a oportunidade de ouro para ir embora. Como as vendas continuaram, por menores que tenham sido, limparam os estoques, inclusive de peças nas linhas de montagem, fazendo caixa como nunca se viu no setor. Com as fábricas vazias, com um valor baixo para indenizar poucas pessoas, a pandemia levantou a bola e a diretoria chutou a empresa para fora do país, tal e qual o saudoso Nelinho chutou a bola para fora do Mineirão quarenta anos atrás.

A saída da Ford tem, portanto, duas vertentes com alto grau de correlação entre elas. A primeira vertente representou-se por uma sucessão de decisões internas equivocadas que lhe limitaram a participação de mercado. A outra é que o Brasil se assemelha a uma centopeia que não cansa de dar tiros nos pés, e o fez com arma de grande calibre ao sancionar a lei 6404/1976, tirando o capitalista brasileiro dos investimentos na indústria em geral e na automobilística em particular.

Atirou ainda com lançador de granadas ao promover reformas trabalhistas que tiraram os trabalhadores das mesas de negociação. Sem capitalistas nacionais, sem trabalhadores brasileiros como obstáculos, foi só escolher a melhor oportunidade para levantar-se e ir embora sem dar gorjeta ao garçom que se chama governo. Apesar do senso comum, terá sido a falta de custo de saída, não o propalado custo-Brasil que permitiu que a Ford se fosse com seriíssimo risco de puxar a fila.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.