Regulamentação dos motoristas por aplicativo: um PL equivocado (parte II)

Este capítulo da série visa a entender, ponto a ponto, o projeto de lei complementar em questão para que não pairem dúvidas acerca das incoerências que traz em seu bojo e da insegurança jurídica que causa ao conflitar frontalmente com o Código do Consumidor. Com o agravante de que, como lei complementar, é hierarquicamente superior a ele, que é lei ordinária. Para facilitar a leitura, o presente texto organiza-se da mesma forma que o projeto, eliminando as disposições que não mereçam comentários. Leia a primeira parte aqui.

Neste segundo capítulo, serão descritos e comentados os principais pontos do Projeto de Lei que pretende regularizar a profissão dos motoristas por aplicativo (Foto: reprodução/Freepik)

Art. 1º:“Esta Lei Complementar dispõe sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e estabelece mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho.”

Note-se que o consumidor sequer é mencionado e o texto parece enfatizar a intermediação, retirando da empresa qualquer responsabilidade pela qualidade do serviço prestado, muito menos o respeito à legislação pertinente ao transporte público. O projeto também não considera a possibilidade de usarem-se motocicletas para o mesmo fim e é extremamente restritivo, considerando-se que o agenciamento de carga, que pode ir das duas às vinte rodas, também carece de regras que protejam seus trabalhadores.

Foto: 99/divulgação

Art. 3º: “O trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de empresa operadora de aplicativo, será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo por plataforma e será regido por esta Lei Complementar sempre que prestar o serviço, desde que com plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo.”

§ 1º:“O enquadramento do trabalhador de que trata o caput pressupõe as seguintes condições, que serão objeto de fiscalização na forma do disposto no Art. 14:

I- inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa operadora de aplicativo, assegurado o direito de prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas, com intermediação de mais de uma empresa operadora de aplicativo no mesmo período; e

II- inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço.”

§ 2º: “O período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias, na forma do regulamento.”

§ 3º: “Para fins do disposto nesta Lei Complementar, o trabalhador de que trata o caput integra a categoria profissional “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas” e será representado por sindicato que abranja a respectiva categoria profissional, e as empresas operadoras de aplicativos serão representadas por entidade sindical da categoria econômica específica, com as seguintes atribuições:

I- negociação coletiva;

II- celebração de acordo ou convenção coletiva; e

III- representação coletiva dos trabalhadores ou das empresas nas demandas judiciais e extrajudiciais de interesse da categoria.”

Reforça a isenção da empresa no que concerne ao relacionamento com o cliente, como demonstrado acima. Como tempo máximo é de 12 h/plataforma, se o motorista atender duas delas, poderá trabalhar por 24 h/dia, mantendo-se o mesmo grau de exploração e desumanidade. Por fim, contraditoriamente, impõe a existência de um sindicato, coisa inerente às relações de trabalho, mas não diz como financiá-lo.

Foto: Uber/divulgação

Art. 4º: “Sem prejuízo do disposto no Art. 3º, outros direitos não previstos nesta Lei Complementar serão objeto de negociação coletiva entre o sindicato da categoria profissional que representa os trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativo, observados os limites estabelecidos na Constituição.”

§ 1º: “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo.”

§ 2º: “Durante o processo de negociação coletiva entre os sindicatos representativos dos trabalhadores que prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e as empresas operadoras de aplicativos, as partes envolvidas serão incentivadas a buscar soluções consensuais antes de demandarem o Poder Judiciário, de modo a promover a resolução amigável de disputas e fortalecer a autonomia na negociação coletiva, o diálogo e a autocomposição na relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativo.”

E qual será o ramo da justiça a recorrer? Se for ao do trabalho, está-se configurando a relação empregatícia; se for a justiça comum, não está aparelhada pare esse tipo de acordo, podendo declarar-se incompetente.

Foto: Uber/divulgação

Art. 5º: “As empresas operadoras de aplicativos ficam autorizadas a implementar as seguintes práticas, sem que isso configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943:

I – adoção de normas e medidas para garantir a segurança da plataforma, dos trabalhadores e dos usuários, para coibir fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, observadas as regras previamente estipuladas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma;

II – adoção de normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões, observadas as regras previamente estipuladas nos termos de uso e nos contratos de adesão à plataforma;

III – utilização de sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados;

IV – utilização de sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários; e

V – oferta de cursos ou treinamentos, bem como quaisquer benefícios e incentivos aos trabalhadores, de natureza monetária ou não, ainda que de caráter continuado.”

Falta caracterizar o serviço como transporte público, tal que não se recusem passageiros com necessidades especiais sob a alegação de o carro não ser adaptado.

Foto: InDrive/divulgação

Art. 9º: “A remuneração mínima do trabalhador de que trata o caput do Art. 3º será proporcionalmente equivalente ao salário-mínimo nacional, acrescido do ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, nos termos do disposto em regulamento.”

§ 1º: “Os custos a que se refere o caput contemplam, no mínimo, os custos e as tarifas relativos ao uso do aparelho celular, ao combustível, à manutenção do veículo, ao seguro automotivo, aos impostos e à depreciação do veículo automotor.”

§ 2º: “Fica estabelecido, como remuneração mínima, o valor horário de R$ 32,10 (trinta e dois reais e dez centavos), devendo ser contabilizado, para fins desse cálculo, somente o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino.”

§ 3º: “O valor da remuneração a que se refere o § 2º é composto de R$ 8,03 (oito reais e três centavos), a título de retribuição pelos serviços prestados, e de R$ 24,07 (vinte e quatro reais e sete centavos), a título de ressarcimento dos custos incorridos pelo trabalhador na prestação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.”

§ 4º: “Os valores a que se referem os § 2º e § 3º deste artigo serão reajustados mediante a aplicação da sistemática de valorização do salário-mínimo prevista no caput e no

§ 1º do Art. 3º da Lei nº 14.663, de 28 de agosto de 2023.”

§ 5º: “A remuneração mínima estabelecida neste artigo será verificada de forma agregada, a cada mês, pela empresa operadora de aplicativo.”

§ 6º: “Caso o valor recebido pelas horas trabalhadas, calculado na forma prevista neste artigo, seja inferior ao valor horário estabelecido, a empresa deverá apurar e realizar o repasse complementar da diferença, observado o prazo previsto no inciso II do § 3º do Art.10.”

§ 7º: “É vedado às empresas operadoras de aplicativo limitar a distribuição de viagens quando o trabalhador atingir a remuneração horária mínima de que trata este artigo.”

Esse artigo chega a ser ingênuo. A exemplo do que acontece na agricultura, em que se é obrigado a pagar o que for maior, ou o valor do tempo, ou o serviço prestado, as empresas tenderão a excluir da plataforma todos aqueles menos produtivos, ficando somente com os de maior dedicação, tal que a probabilidade de ressarcimento tenda a zero. Ao mesmo tempo, o projeto não considera que o custo do veículo é medido por quilômetro rodado e o trabalho por tempo. Não é possível garantir a remuneração do veículo por tempo como aqui exposto. Isso vai implicar em que a plataforma tenda a encarecer as corridas mais curtas, prejudicando o consumidor.

Ao mesmo tempo, como não há limites mínimos para o tipo de veículo, os motoristas tenderão aos carros mais básicos, prejudicando o conforto do passageiro. O primeiro entre os itens a serem excluídos será o condicionador de ar, porque, além de encarecer o veículo, consome energia ou combustível durante seu uso.

Foto: Cabify/divulgação

Art. 15.: “O descumprimento do disposto nesta Lei Complementar, no que se refere às disposições trabalhistas, sujeita a empresa infratora ao pagamento de multa administrativa cujo valor corresponderá a até cem salários-mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.”

Afinal, o motorista é empregado ou autônomo?

Certamente, existem muitos outros pontos a considerar. Estes pareceram os mais evidentes. Na próxima semana, uma sugestão mais madura para regular esse mercado.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.