A história vitoriosa dos motores VW AP e seus quase 40 anos de produção

Há quase quatro anos, lá em 2019, detalhei em uma matéria (“Motores VW da família AP, um dos melhores já produzidos no Brasil”), toda a história e os detalhes técnicos do lendário motor AP, em todas as suas configurações: 1.6, 1.8 e 2.0, injetados e carburados, flex ou monocombustível, e por aí vai. Foi uma geração de propulsores fantástica, que reunia em um único projeto robustez, resistência mecânica, durabilidade, e a alta performance, que, no final das contas, acabou por batizá-los.

Em diferentes configurações, os motores AP e seus parentes são parte importante da nossa indústria automobilística (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Com projeto original Auto Union, ou Audi se assim preferir, sua concepção básica passou ao controle da Volkswagen quando ela assumiu a Auto Union (formada por Audi, DKW, Horch e Wanderer). Dali em diante, a Volks teve acesso completo a esse ótimo conceito de motor, e o Passat foi o primeiro carro da marca a utilizar essa mecânica. Aqui no Brasil, o modelo foi lançado em 1974 com a variante de 1.5 litro com carburador de corpo simples, gerando cerca de 65 cv líquidos de potência.

O primeiro Passat foi o responsável por estrear o projeto dos motores Auto Union no Brasil (Foto: VW/divulgação)

Não era muito, mas, para a época, significava um bom resultado, e por isso o carro tinha desempenho interessante. Por essas e outras, o Passat surpreendeu na época. Para a linha 1976 veio o segundo integrante dessa família de motores, lançado no esportivo Passat TS: era o mesmo projeto mecânico, mas com 1.6 litro, pistões maiores e carburador de corpo-duplo, subindo sua potência líquida para cerca de 80 cv.

Nessa época, eu iniciava minha carreira jornalística, e dirigir um Passat TS com motor 1.6 era uma experiência inesquecível: se você parasse em um semáforo ao lado dos grandes “Dojão”, “Mavecão” ou “Opalão”, todos com seus seis em linha ou V8, não precisava ter medo. O Passat, arrancando com vontade, acompanhava de igual para igual os maiores. Era só alegria a bordo do TS.

O 1,6 do TS era nervoso, mas a evolução estava só começando (Foto: VW/divulgação)

Em 1981, comecei a correr de Passat, sabendo que o carro tinha seus méritos e qualidades para a performance. Comprei um LS duas portas, desmontei seu 1500 e o aumentei para 1.6 litro trocando os pistões. Externamente, mas dentro do cofre, troquei o coletor de admissão e, num desmanche, achei o precioso carburador Solex de corpo-duplo que vinha originalmente nos TS. O coletor de escape era dimensionado, 4 em 1.

No circuito antigo de Interlagos, assim configurado e abastecido com álcool, chegava na freada da Curva Três, no final da reta, a 7 mil rpm em 4ª marcha. Isso era muito rápido! Seu motorzinho, vindo do projeto alemão, se dava bem em todas as categorias que participasse nas corridas, e os preparadores deitavam e rolavam com componentes, como comandos de válvulas, cabeçotes trabalhados e por aí vai, que faziam o compacto propulsor de origem Audi chegar a resultados espantosos de desempenho.

De tanto que gostava do Passat e de seu motor, escolhi o médio da VW para estrear nas corridas (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Claro, o projeto era bom, e por isso evoluiu dentro da VW. Se na sua versão original, lá do início dos anos 70, aqueles motores já davam potência a mais de 5.500 rpm, mostrando seu lado “girador” que não tem medo de rotações altas, suas evoluções se tornaram queridinhas nas mãos dos preparadores. Os profissionais faziam o motor respirar melhor com coletores de admissão maiores, permitindo carburação especial: um Weber duplo IDF de 40 mm, ou até dois deles, com cada corpo alimentando um cilindro.

Melhor ainda quando o coletor permitia a adaptação de dois Weber 40 DCOE, horizontais, que trabalhavam em conjunto com um comando de válvulas alemão e um coletor de escape dimensionado. Estava aí a fórmula para fazer os Passatinhos voarem baixo no início dos anos 80, época que já tínhamos Voyage e Parati que também vinham com essa família de motores. Inicialmente, o bom e velho 1.5 herdado do Passat, e que, já em 1983, deu lugar ao 1.6. Aí sim, o bicho pegou…

O bicho pegou quando o 1.6 passou a ser oferecido também no Gol, Parati e Voyage. Aqui, na foto, ele instalado em um Passat (Foto: Christian Castanho/Quatro Rodas)

Em 1984, a grande surpresa foi a chegada do Gol GT, o primeiro arrefecido a água. Seu 1.8 também fazia parte dessa família Auto Union. Quase que simultaneamente, eram lançados também o Santana e sua perua Quantum, com o mesmo 1.8 do GT, só que mais amansado. Apesar do mesmo diâmetro de pistões entre o 1.6 e o 1.8 (81 mm), as peças diferiam entre si pela altura do pino, além do curso maior no 1.8. Ainda com bielas curtas, o que tornava seu funcionamento mais áspero e com mais atrito interno, esses propulsores eram muito bons, e não paravam sua evolução.

Inédita versão 1.8 veio no Gol GT: um foguetinho (Foto: VW/divulgação)

Lembro-me de estar no meu início de carreira na revista Quatro Rodas quando tive a oportunidade de guiar os primeiros Gol GT, ainda com quatro marchas. Fiquei abismado com o desempenho, principalmente, da versão a álcool, que já utilizava a arrojada taxa de compressão de 12:1. Um assombro para a época. Por ser mais leve e com motor de cilindrada maior, com mais torque disponível em regimes elevados, o GT, quando comparado ao antigo Passat TS de 1976, era um verdadeiro rojão: ganhava na capacidade cúbica, na taxa de compressão (o TS tinha até 8,5:1), na relação peso X potência e na relação de transmissão, com câmbio mais curto.

A diferença se tornou mais gritante com a chegada do câmbio de 5 marchas no Gol GT, o tão falado PV, que além de ter escalonamento curto em todas as marchas, chegou praticamente junto ao motor AP (Alta Performance). Com relação ao anterior 1.8, o novo AP-800 do Gol GT linha 1986 recebeu uma merecida evolução, que fez toda a diferença, e realmente deu início a fama dos motores VW AP. Houve um retrabalho interno objetivando a redução dos atritos mecânicos: saias de pistão mais curtas, bielas longas, anéis de segmentos mais finos, comandos de válvulas melhores elaborados, fora as calibrações de ignição e carburação (Brosol 2E).

De tanto que gostei do novo AP, uma evolução dos MD, logo corri pra comprar meu Gol AP-600 1987 (Foto: reprodução/zeroauto.com.br

Os motores AP, em sua estreia, me deixaram tão entusiasmados que, já em 1986, comprei um Gol LS com o AP-600, de 1.6 litro e 85 cv líquidos a álcool. Nele, mesmo com a menor cilindrada e sem pretensões esportivas, havia a boa taxa de compressão de 12:1, ou 8,5:1 com gasolina, rendendo, nesse caso, 80 cv líquidos. Lembrando que, nessa época, nossa gasolina era horrível, pra não dizer outra coisa: tinha baixíssima octanagem e uma concentração de enxofre na casa dos 1.500 PPM (partes por milhão). Hoje esse número ronda os 50 PPM.

Apesar do meu Gol ainda ter o câmbio de quatro marchas (a 5ª só vinha nos modelos esportivos e de luxo), o carro apresentava uma performance boa para a época, bastante superior ao antigo 1.6 do TS, que entregava no máximo 78 cv líquidos. Esse avanço todo, que fique claro, se deu em 10 anos de evolução dos motores: de 1976 até 1986, ano do meu Golzinho AP-600 prata, que eu tanto curtia dirigir.

O legal nos anos 80, é que a GM vinha na mesma balada com seu motor 1.6, também de origem alemã (só que Opel), lançado no Monza em 1982. Para fazer frente a VW, a marca da gravatinha já tinha, com o aval da Opel, seu 1.8 na manga, inicialmente oferecido com carburador de corpo simples e depois carburador de corpo-duplo. O motor da Chevrolet também era uma fera para a época. Coincidência ou não, o Monza foi o carro mais vendido do nosso mercado em 1984, 1985 e 1986. A briga era boa!

Só como referência, o Gol assumiu a liderança, tomando-a do Monza, em 1987, e assim ficou até algum tempo atrás, totalizando 27 anos consecutivos.

Satisfação ao dirigir, isso sim, era pilotar um VW Gol GTI, apresentado no Salão do Automóvel de 1988 como linha 89. Quem teve a oportunidade de estar ao volante do Golzinho metido a valente sabe do que estou falando. Na minha opinião, foi o ápice da lendária família AP, incluindo seus antecessores. Essa época, o 2.0 era o irmão maior dessa família, lançado em 1988 ainda carburado. Em paralelo, a engenharia da VW já preparava o 2.0 injetado e com sistema de ignição digital.

De 1988, o Gol GTI é ícone até hoje, e pioneiro no nosso mercado (Foto: Marco de Bari/Quatro Rodas)

Se o AP-2000 não era lá essas coisas quando carburado, ele renascia por completo injetado, como um verdadeiro foguete. A primeira versão de lançamento tinha nada menos que 125 cv ABNT, e torque máximo que beirava os 19 mkgf. Hoje parecem pífios, típicos de um 1.0 superalimentado, mas espantosos para o final dos anos 80 e início de 90, ainda mais em um levíssimo Gol, nascendo assim um dos melhores carros nacionais já produzidos.

 

O GTI fazia de 0 a 100 km/h em cerca de 8,7 segundos e atingia fácil os 190 km/h de máxima, esses sim números de respeito para os dias atuais, mesmo falando de esportivos. O 2.0 AP tinha seu sistema Bosch LE-Jetronic de injeção, ainda analógico, que trabalhava com a moderna ignição eletrônica EZK, essa digital e com sensor de detonação no bloco: com ele, o sistema “ouvia” o primeiro sinal de detonação para fazer correções constantes na curva de avanço do motor.

Isso fez com que o AP-2000, vendido só na versão a gasolina no caso do Gol GTI, utilizasse taxa de compressão de 10,5:1, valor impossível para um motor carburado a gasolina da época. Esse era um AP para ninguém botar defeito, e praticamente inquebrável, pois o próprio sistema de injeção/ignição cortava o motor quando o número de RPM excedia o limite de segurança.

Nos anos 90, os AP vieram com os sistemas de injeção em toda a linha, isso em 1994, ainda com tecnologia monoponto (os chamados “1.6i”, “1.8i”, “2.0i”), isso valendo para álcool e gasolina, inclusive no Gol GTI bolinha (a injeção dele já era digital). Mas, já dois anos depois, por uma questão de consumo e emissão de gases poluentes, a VW adotou a injeção multiponto, e assim surgia a sigla “Mi”, de “Multipoint injection”, para toda a linha 1997.

No início dos anos 2000, em 2003 para ser exato, os VW AP ainda mostravam pioneirismos: além de ter sido o primeiro motor com injeção eletrônica no Brasil, eles também estrearam a tecnologia flex por aqui. E, claro, o Gol foi o primeiro carro a receber essa tecnologia, podendo queimar gasolina, álcool, ou a mistura de ambos, de acordo com as preferências e necessidades do motorista. Desta vez, a grande inovação vinha na variação AP-600, de 1.6 litro, mas ainda um AP.

Essa família foi tão importante para o mercado nacional que continuou em produção por aqui, considerando o Passat 1974, por quase 40 anos: sua despedida se deu entre 2012 e 2013, junto da Parati, oferecida em fim de linha com uma versão modernizada do AP-600. Mesmo veterano, o AP, em seu último ano de produção, estava praticamente empatado com o então moderno 1.6 EA-111, criado nos anos 2000 para ser seu substituto.

A Parati se despediu em 2012, e levou com ela o último motor AP, no caso o 1.6 Total Flex (Foto: VW/divulgação)

Os números de potência máxima eram quase iguais (diferença de 1 cv), enquanto o torque diferia em até 1 mkgf, uma vitória para um motor tão longevo e com poucos recursos tecnológicos da atualidade. Por isso é tão cultuado até hoje, e considerado por muitos o melhor motor já produzido no Brasil.

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.