Fiat Uno, a história: convivência com o Palio, reestilização de 2004 e fim em 2013

O ano de 1996 foi marcante para o Uno e sua história no mercado nacional. Nesta data, mais precisamente em abril, marcou a chegada do Palio, o novo projeto de hatch popular da Fiat que vinha com a missão de substituir e melhorar o velho guerreiro Uninho, que já estava há praticamente 12 anos sem muitas mudanças. O Palio chegou com pinta de quem ia dominar fácil o Uno, mas não foi bem assim: o “Botinha Ortopédica”, com suas inegáveis qualidades de espaço interno, bom desempenho e baixo custo de manutenção e, principalmente, economia de combustível, continuava a dar muito trabalho ao seu sucessor Palio, que também compartilhava alguns componentes mecânicos com o Uno.

Em 1996 o Palio chegava, e dava a entender que esse seria o fim do Uninho (Foto: Fiat/divulgação)

Mas o guerreiro da Fiat nadava de braçada sobre o Palio quando se tratava da versão 1.0 e, principalmente, por seu preço muito mais atraente quando comparado com o irmão que acabava de chegar. Para quem pensou que o Uno estava com os dias contados, um grande engano: ele ainda ficaria no mercado por mais 17 anos, em que pese até o lançamento de uma nova geração em 2010 (que vale um outro texto para o futuro).

A chegada do Palio afetou bastante a linha de versões do Uno: saíam de cena as configurações mais caras, equipadas com motor 1.5 e 1.6, deixando esse espaço ao Palio. Os Uno Turbo também se despediam aí, já com a queda do sucesso dos esportivos pequenos. Na linha de frente, ficou apenas o valente Mille SX (Standart eXtra), que no ano seguinte viraria EX (Economic eXtra), equipado com o durável 1.0 Fiasa de 57 cv e bastante simplório nos itens de série, além da versão Furgão 1.5 Fiasa, destinada exclusivamente a empresas e vendas por CNPJ.

Após perder várias versões, incluindo a esportiva Turbo, o Uninho permanecia em linha unicamente com a configuração SX (Foto: Fiat/divulgação)

O uso do motor 1.5 no Furgão era para suprir o peso extra da carga que ele carregava como veículo de trabalho, então, quando estava vazio, ele era conhecido pelo ótimo desempenho (a redução de peso interno era o principal motivo, já que ele não trazia bancos ou vidros traseiros). Um ponto de destaque do Uno era, sem dúvidas, sua destacável robustez mecânica: o carrinho não sabia o que era visita ao mecânico, e quando necessitava de algum reparo, era rápido e barato de ser feito. Por essa fórmula de sucesso, percebe-se por que ele ficou em produção por mais quase duas décadas.

De 1998 até o final de 2000, quando estreou a versão Smart (acima da EX), o Uno continuou sua trajetória sempre como um dos carros mais vendidos do mercado nacional, em que pese o fato do Palio já ter mostrado suas qualidades ao mercado, disputar palmo a palmo as vendas e as linhas de produção com seu irmão menor e mais antigo. O visual interno e externo ainda era o mesmo de 1991, com mudanças em detalhes como calotas e emblemas.

Para 2000: nova versão Smart no topo da gama (Foto: Fiat/divulgação)

Na linha 2002, o “Botinha Ortopédica” deu outro grande passo rumo à fidelização ainda maior do seu público consumidor. Estamos falando da chegada do então moderno motor FIRE, que, para a surpresa de muitos, não tem seu significado do inglês fogo, mas sim de Fully Integrated Robotized Engine (algo como Motor Totalmente Integrado Roboticamente, que se referia ao processo de produção completamente automatizado e muito mais moderno). Essa família FIRE aposentou por completo os antigos e valentes Fiasa, que já estavam em produção desde os anos 70 com o lançamento do 147.

Com o novo motor moderno, o Mille passou a ter 55 cv e 8,5 mkgf de torque, contra os 57 cv e 8,2 mkgf do Fiasa. Em que pese a perda de 2 cv na potência máxima, o que poderia induzir a uma redução do desempenho do carrinho, um engano: o ganho de 0,3 mkgf no torque, principalmente nas médias e baixas rotações, deu ao Mille FIRE uma boa dose de agilidade, e até mesmo uma considerável redução do consumo de combustível. Com maior torque disponível nas menores rotações, o motorista exigia menos do acelerador, o que resultava em uma condução mais agradável e mais econômica. Esse era o resultado prático da adoção de um propulsor de concepção mais recente.

O inédito motor FIRE, que chegou em 2001, aposentava o velho Fiasa. Nova grade, mais arredondada, era o chamariz visual (Foto: Fiat/divulgação)

Para acompanhar as novidades sob o capô, o Mille recebia a primeira atualização estética em anos: a antiga grade aletada dava lugar a uma com abertura maior e visual mais arredondado, acompanhando o também novo emblema da Fiat, enquanto alguns outros componentes vinham do Palio (retrovisores e chaves de seta, por exemplo). Para quem está se perguntando, o Uno Furgão continuava em linha e era o único que mantinha o 1.5 Fiasa. Isso só foi mudar em 2003, quando ele recebeu a variação 1.3 do FIRE com 65 cv e 11 mkgf de torque, ainda mais adequada para a proposta do Uninho de trabalho.

Percebendo que a estratégia de fazer do Palio um sucessor do Uno não iria dar certo, a Fiat decidiu então aprimorar a “Botinha Ortopédica” em fevereiro de 2004. Com uma reestilização completa da carroceria, que incluía novos faróis, grade dianteira, parachoques (com estranhos borrachões pretos para passar a impressão de robustez), retrovisores, tampa do porta-malas, lanternas, calotas e por aí vai, o guerreiro Mille estava mais diferente do que nunca: enquanto a frente ganhava um aspecto mais atual (ou menos antiquado), a traseira inaugurava o novo lugar da placa de licença, que descia para o parachoque. E tudo isso era realçado com um interior totalmente revisto, agora adotando diversos componentes do próprio Palio.

A reestilização de 2004 mudava frente, traseira e interior, mas não agradou (Foto: Fiat/divulgação)

Outra mudança estava na extinção da gama de versões do carrinho: agora existia apenas o Fiat Mille nas carrocerias de duas ou quatro portas, sem níveis de acabamento como antes. A interessante oferta de equipamentos como ar-condicionado, direção hidráulica e vidros dianteiros elétricos, por exemplo, permanecia, só que todos esses itens eram vendidos como opcionais separadamente. Uma estratégia de mercado simples para um carro simples.

Em uma estratégia de simplificar ainda mais o carrinho, a Fiat removia completamente suas as versões. O Mille Fire podia ser equipado com equipamentos opcionais e acessórios (Foto: Fiat/divulgação)

Só que esse visual renovado não agradou muito o fiel público consumidor do Mille, que provavelmente estava acostumado com aquelas linhas tradicionais de 1990. Para resolver isso, a Fiat providenciou mais algumas mudanças pontuais para a linha 2006, adotando nova grade dianteira e mexendo novamente nos parachoques (as partes mais criticadas após a reestilização de 2004). Além disso, também na linha 2006 chegava outro enorme avanço para o modelo: a tecnologia flexfuel no motor 1.0 FIRE, até então inédita na história do Uno. Agora, esse propulsor entregava bons 65/66 cv de potência e 9,1/9,2 mkgf de torque (gasolina/etanol), dando um fôlego extra ao carrinho.

Em 2005, na linha 2006, o motor FIRE ganhava a tecnologia flexfuel, enquanto a frente recebia melhorias para tentar agradar o consumidor (Foto: Fiat/divulgação)

Mas para quem pensa que esse seria o fim derradeiro do guerreiro da Fiat, um engano. Em meados de 2006, estreava a versão Way, com suspensão elevada em 4 cm, acabamentos plásticos espalhados pela carroceria e proposta aventureira. Na realidade, o Mille Way seria uma resposta ao então Novo VW Gol G4, que havia sido lançado há alguns meses e estava crescendo no ranking de vendas. Lembrando que o know-how da Fiat com carros aventureiros já vinha desde a década de 90, com Fiorino Trekking e a pioneira Palio Weekend Adventure, dois precursores da onda dos fora-de-estrada “de mentirinha”, que tanto cativou o consumidor brasileiro na década de 2000. Foi uma receita de sucesso, e essa versão passou a vender muito bem desde seu lançamento.

Nessa época, o Mille se gabava por ser o carro mais barato do Brasil, posto que foi tirado dele pelo chinês Effa M-100 em 2007. Mesmo assim, a briga pela pechincha era parelha entre os dois, já que em algumas promoções e ofertas, o veterano Fiat voltava ao pódio. O baixo preço era mais do que justificado: com os custos de desenvolvimento totalmente pagos, ele ainda era bem despojado de equipamentos e tinha uma construção simples, ou seja, não tinha como custar caro.

2006: nova versão aventureira Way. 2007: perda do título de carro mais barato do país para o chinês Effa M-100 (Foto: Fiat/divulgação)

Em 2009, era hora de mais mudanças. Como a economia de combustível era um dos principais chamarizes do Mille, explorar melhor esse argumento de vendas era uma ótima forma de fazer as vendas crescerem ainda mais. Seguindo esses passos, tínhamos o Novo Mille Economy, que passava a ser a versão de entrada do modelo, ficando abaixo da Way.

Com nova grade dianteira, calotas inéditas e um útil econômetro no painel de instrumentos, esse Mille Economy foi lançado com um propósito: se tornar o carro a combustão mais econômico do Brasil, ou o mais próximo disso que fosse possível. E ele tinha tudo para tal, já que o baixo consumo, peso contido e bom coeficiente aerodinâmico eram méritos que o Uno trazia de berço. Mesmo depois de 25 anos, o bom e velho Uninho ainda batia recordes, superando vários rivais mais modernos e tecnológicos.

Inédita e focada na economia de combustível, a linha Economy logo se estendeu também para a Way (Foto: Fiat/divulgação)

Se mantendo inalterado pelos próximos quatro anos, a hora do merecido descanso do guerreiro da Fiat estava próxima: a legislação brasileira determinava que, a partir de 1º de janeiro de 2014, todos os automóveis nacionais deveriam sair de fábrica com airbag duplo frontal e freios ABS. Esse era o pesadelo do Mille, que nunca havia recebido tais equipamentos. Para a Fiat, a adaptação desses itens no Uninho não valia a pena, já que seriam necessárias grandes alterações no projeto básico do carro, datado de 1983.

Mesmo assim, ele definitivamente não desapontava nas vendas: Em 2013, mais da metade dos Uno vendidos no Brasil eram Mille, então, se não fosse a lei da obrigatoriedade de airbag duplo e ABS, provavelmente o veterano da Fiat iria continuar figurando entre os mais vendidos por mais um bom tempo (quem sabe, até hoje).

Com a lei obrigando airbag duplo e ABS a partir de 2014, não tinha mais como o Uno se manter em produção. Como versão de despedida, a simpática Grazie Mille (Foto: Fiat/divulgação)

Sua despedida em dezembro de 2013 foi pomposa e merecida, com direito até a uma série especial chamada de Grazie Mille (Obrigado Mille em italiano), que foi limitada em 2 mil unidades e trazia todos os itens opcionais no modelo na época, como rodas de liga-leve, rádio AM/FM, direção hidráulica, ar-condicionado, vidros/travas elétricas e por aí vai. A última unidade do Mille que deixou a linha de produção foi pintada na cor Verde Saquarema, exclusiva da versão dessa versão final, e hoje pertence ao acervo histórico da Fiat do Brasil.

Após quase 30 anos de produção e mais de 3,7 milhões de unidades produzidas, o Uninho se despedia em dezembro de 2013. A última unidade produzida, o carro da foto, está preservado no acervo histórico da Fiat brasileira (Foto: Fiat/divulgação)

Com nada menos que 3,7 milhões de carros fabricados nesse período de 29 anos, o Uno “Botinha Ortopédica” é um carro pra lá de respeitado e consagrado no mercado nacional, e seu sucesso e carisma nunca foram atingidos por nenhum outro modelo da Fiat, pelo menos por enquanto. Um carrinho lendário, que marcou de forma estrondosa o mercado automotivo nacional.

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.