Frota, o lado escuro da lua (3/3): A frota e suas bizarrias

A frota e suas bizarrias

A frota ainda não anda sozinha, depende de gente. Onde tem gente tem confusão, especialmente, porque gente tem horror ao controle. O problema é que a vigilância se tornou onipresente graças aos aplicativos, que substituíram as planilhas de papel. Há ainda os sistemas embarcados, em que o operador simplesmente indique o que vai fazer e ele se encarrega por transmitir para o ERP (Enterprise Resorce Planner), que é o sistema de controle integrado que unifica as tarefas da oficina e registra o serviço executado para contabilidade de custos.

Para ambos, manter hodômetro e horímetro funcionando é essencial, apesar de outros parâmetros serem exigidos para fins de rastreio. Falhas ainda acontecem, mas, quando o registro era manual, não havia um dia em que não ríssemos um bocado. Pode-se dizer que as risadas são o motor para o desenvolvimento dos sistemas de controle.

Num escritório que administrava mais de vinte fazendas, não havia contato entre digitadores e operadores, que, consequentemente, não receberam o devido treino. Percebemos que, em dada propriedade, acumulavam-se fichas para a máquina de nº 1, enquanto as demais não apresentavam movimento. Fomos investigar e descobrimos que se tratava de uma Kombi destinada ao transporte de peões. O pior é que havia um lançamento em que ela arrastara um arado por 80 km e pelo asfalto. Na verdade, ela tinha rebocado uma carretinha para mudança dos pertences de um empregado de uma fazenda para outra do mesmo grupo.

Nos relatórios, a Kombi tinha puxado um arado pelo asfalto por 80 km, mas na realidade era só uma carretinha de mudança (Foto: reprodução/AutoEntusiastas)

Noutra feita, a máquina nº1 era o Golf da esposa do fazendeiro, que foi lançada no lugar de uma enxada rotativa. A saída foi elencar todos os implementos possíveis para cada tipo de máquina, o que resultou no histórico de acoplamento, mais tarde usado para o rastreio de produtos.

Em outra propriedade, encontrava-se um caminhão que deveria estar na Fórmula 1. É que as fichas de um Mercedes 710 vinham com registros absurdos de hodômetro e tempo. O pobrezinho atingia 317 km/h. Como o hodômetro estava quebrado, o motorista chutava os valores. Em Brasília, um caminhão, que rodava a 160 km/h pelo Plano Piloto, nunca levou uma multa. Nesse caso, o motorista ganhava por quilômetro rodado e adulterou o tacógrafo. Tivemos de tomar duas medidas: a primeira foi limitar a variação de horímetro a vinte horas num mesmo dia e a velocidade máxima para os veículos, adequando-as ao seu tipo de trabalho. A segunda medida foi verificar periodicamente o funcionamento de horímetros e hodômetros, para garantir a qualidade da apuração.

O Mercedinho, nas fichas de controle, alcançava as velocidades de um carro superesportivo (Foto: Divulgação/Mercedes-Benz)

Numa propriedade em Minas, detectamos um consumo de graxa todas as vezes em que se trocava o óleo dos tratores. Fomos investigar e descobrimos que o chefe da oficina misturava graxa no óleo para deixá-lo mais espesso. Ele entendia que, assim, os motores mais “folgados” passavam a dar pressão de óleo podendo-se postergar a retífica. Aprofundando a investigação, percebemos que houvera um curso de lubrificação dado pelo próprio representante. A curiosidade aumentou, pois um absurdo desses só seria admissível por falta de instrução. Ficamos pasmos ao ouvir, do próprio representante, que ele sabia que era errado, mas tinha medo de perder o cliente.

O mesmo chefe de oficina presenteou-nos com outra pérola. Sempre que uma determinada grade era usada com um dado trator, gastava 25% mais tempo para o mesmo serviço do que quando acoplada a qualquer outro trator. Investigando, descobriu-se que aquele trator tinha o compressor hidráulico danificado e não dava pressão suficiente para cravar a grade na terra. Em vez de reparar a máquina, ele retirava dois discos de cada lado para não forçar o equipamento.

A cereja do bolo vinha da própria pressão por fazer funcionar horímetros e hodômetros. Quando se vendia uma máquina, os mecânicos costumavam instalar um medidor quebrado, guardando o funcional. Isso provocava saltos injustificáveis nos valores, pois hora um medidor estava numa máquina, hora estava em outra, arrasando qualquer tentativa de controle. Ajustamos o sistema para só aceitar trocas de medidor por um novo, zerado.

Foi então que o pessoal começou a ligar o dispositivo em uma furadeira para obrigá-lo a chegar ao zero novamente, continuando a pôr medidores usados em outras máquinas. É evidente que, não sendo feita para tamanha rotação, a coisa quebrava no dia seguinte. Os fabricantes não ajudavam em nada, pois medidores sobressalentes eram bastante raros, além de os hodômetros serem acoplados aos velocímetros. Benditos sejam os painéis digitais.

Não resta a menor dúvida de que a eletrônica seja o nirvana do controle de frotas, que venha mais, muito mais.

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.