Regulamentação dos motoristas por aplicativo: um PL equivocado (parte I)

Antes de analisar o PL da regulamentação dos profissionais dependentes de aplicativos, é preciso entender como essa modalidade de trabalho começou. A sugestão aqui é assistir “A Noite dos Desesperados”, filme ganhador de três Oscares, com direção de Sydney Pollack e Jane Fonda no papel principal. Essa história se baseou em “They Shoot Horses, Don’t They?” de Horace McCoy, brilhantemente traduzido por Érico Veríssimo com o título “Mas Não se Mata Cavalo?”.

A dica é assistir ao filme “A Noite dos Desesperados”, para tentar entender o início dessa modalidade de trabalho (Foto: reprodução/Amazon Prime Vídeo)

Trata-se dos concursos de dança em que os desempregados concorriam por saber quem seria capaz de dançar por mais tempo, em troca de comida, um banheiro e alguns caraminguás para o vencedor. A ideia da Uber é semelhante: induzir o motorista a guiar até não aguentar mais em troca de um valor vil, correndo todos os riscos, desde o carro ao sustento de sua família. Algo assim só poderia vir de uma crise econômica catastrófica como a de 2008, com uma tendência à estabilizar-se como profissão depois de que ela passasse.

Infelizmente, a proposta das empresas de transporte por aplicativo são parecidas: fazem com que o motorista trabalhe o máximo possível nas ruas, correndo riscos, em troca de uma remuneração pequena (Foto: Uber/divulgação)

A ideia era brilhante para transformar os trabalhadores no que Karl Marx considerava como luhmpen que, em alemão, significa o que não se enquadra na sociedade constituída pelos capitalistas e os trabalhadores. São aqueles que, ao deixar o emprego formal, viram-se numa categoria à parte, nem autônomo, por não ter uma profissão que justifique o status, nem trabalhador. Pode-se dizer que é o que vive de bico e, por acostumar-se a essa situação, não se vê na condição anterior de assalariado.

No Brasil, há particularidades inerentes à concorrência desleal dos taxistas, já estudada em outro espaço. A ideia se espalhou criando rivais para a Uber, enquanto ela própria tornou-se concorrente de empresas como a Ifood, sempre no ramo de micro-logística urbana. Foi essa logística que trouxe outros negócios igualmente desumanos como as dark kitchens, as cozinhas fantasmas, mas isso é uma outra história.

Ao entrar no nicho de micrologística urbana com o Uber Eats, a empresa acabou entrando em rivalidade com a IFood, por exemplo (Foto: IFood/divulgação)

O fim da crise e a consequente melhora no nível de emprego causaram efeitos interessantes nos serviços baseados em aplicativos. Ao mesmo tempo em que todos os governos do mundo pressionam pela regulamentação, visto que esse enorme contingente deixou de contribuir para a previdência social, os trabalhadores não querem ser descontados além do que já entregam aos seus exploradores. Em New York, por exemplo, ainda antes da pandemia, já se tinha imposto um ganho mínimo de US$15,00 aos motoristas.

Em New York, com a remuneração mínima de US$15,00, a Uber passou a preferir motoristas mais dedicados e produtivos, reduzindo a parceria com boa parte de seus profissionais de transportes (Foto: Eduardo Munõz Alvarez/Getty Images)

Além de visar um piso para a arrecadação previdenciária, a medida visava a reduzir o número de prestadores de serviço, que já alcançara os cento e cinquenta mil, prejudicando o já caótico trânsito da cidade. Deu certo. Como se era de esperar, a Uber perdeu o interesse na quantidade e pulverização, preferindo a produtividade e a dedicação exclusiva, evitando assim o desembolso pela baixa produtividade. Em semanas, o número de motoristas caiu para quarenta e cinco mil, desafogando o trânsito, enquanto a demanda por transporte manteve-se suprida.

Aqui no Brasil, o fim da crise e a mudança de governo trouxeram uma melhora significativa no nível de emprego. O número de Ubers com dedicação integral caiu, ao mesmo tempo em que os demais passaram a escolher corridas. O número de desistências chega a oito ou dez nos horários de pico. Como se isso não bastasse, atitudes como adicionar paradas nas corridas tornaram-se entraves à aceitação. Desde 2022, vem tramitando o PL 1561/2022, prevendo que operadoras de aplicativos garantam um mínimo ao motorista.

Por aqui, no Brasil, já tramita desde 2022 o PL1561, que promete garantir direitos trabalhistas mínimos aos motoristas (Foto: reprodução/Freepik)

Ao mesmo tempo, as centrais sindicais, fortalecidas pelo nível de emprego e pela mudança de partido no poder, começaram a pressionar pela celeridade da regulamentação. Foi quando o Governo apresentou, em 4 de março último, uma nova proposta que também garante um mínimo ao prestador de serviço, incluindo a contribuição previdenciária, ao mesmo tempo em que nega o vínculo empregatício, o que parece um tanto contraditório. Enquanto alguns deles se sentem prejudicados pela perspectiva de queda no ganho, outros mostraram não ter entendido o projeto.

Enquanto o projeto de lei caminha, parte dos motoristas comemora com louvor, enquanto outros não entendem o que deve mudar. Há ainda aqueles que discordam das melhorias (Foto: reprodução/Rede Brasil Atual)

Por ele, sendo a empresa obrigada a garantir R$32,00/h, ela deverá inteirar o valor até que chegue ao estipulado. Se um profissional fizer, por exemplo, R$20,00/h, a empresa deverá desembolsar outros R$12,00, descontando 7% como contribuição previdenciária, pelo que a empresa paga outros 20% à Previdência Social. Se o profissional fizer R$330,00/h ou acima, a empresa não terá nada a repor, pagando os encargos sobre o valor auferido.

Além de garantir contribuição previdenciária e debitar parte à Previdência Social, a empresa de transporte por aplicativo deverá inteirar um valor adicional caso o motorista não cumpra com o mínimo de R$32/hora (Foto: Uber/divulgação)

É de se esperar que as empresas não vão querer os maus profissionais porque sua baixa produtividade induzirá um desembolso bastante significativo. Provavelmente, os que usam o carro para ganhar um dinheiro extra na ida ou na volta do trabalho também não atingirão o mínimo, estando fora muito rapidamente. Se o comportamento for semelhante ao de New York, é de se esperar que dois terços dos prestadores de serviço estarão fora das empresas em pouquíssimo tempo, trazendo um descontentamento com que o Governo ainda não contou.

Existe solução mais aprimorada? Provavelmente, mas fica para a próxima matéria.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.