Os meandros da logística e a “uberização” do frete (Parte III)

Existem cargas que, sem brincadeira, são verdadeiras malas sem alça. A cana é uma delas. Melhor, a cana era uma delas, até que se proibiu a queima pré-colheita, cuja função era eliminar a folhagem e afastar, quando não matar, a fauna escondida no canavial, preservando a segurança dos trabalhadores. A mala da cana-de-açúcar perdeu a alça por ser comprida e fina, tornando o manuseio desconfortável e o transporte ineficiente por conta de a relação peso/volume ser extremamente desfavorável.

Cana-de-açúcar: uma mala sem alça! (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

Como se esses inconvenientes não bastassem, a mala perdeu as rodinhas porque ela ainda é bastante perecível. É que, em contato com o ar, o açúcar começa a fermentar e, se não for processada em 12 h, a produtividade começa a despencar.

A proibição da queima, começando por São Paulo, ocorreu porque, no auge da vigência do Pro-álcool, houve uma greve de cortadores manuais, cujo aumento de salário resultante desagradou muito os usineiros. A solução já existia desde o início dos anos 1930 na Oceania, principalmente na Austrália, de onde vieram as primeiras colhedeiras de cana. Como as condições aqui eram muito diversas, em pouco tempo elas foram nacionalizadas e ampliadas, estando entre as maiores máquinas de uso agrícola do mundo.

Logo as colheitadeiras de cana se tornaram nacionais, maiores, mais tecnológicas e eficientes (Foto: John Deere/divulgação)

O corte mecanizado mudou a correlação de forças entre mão de obra e usineiro, pois os modelos mais modernos executam o trabalho de mais de duzentos homens. Nada digno porque cortar cana não é trabalho, é castigo. Consequentemente, racionalizou significativamente a logística. É que essas máquinas cortam os caules em “toletes” de até 20 cm, decuplicando a relação peso/volume da carga entre a lavoura e a recepção nas usinas, além de agilizar a descarga.

Se reduziu custos por um lado, além de preservar todos do entorno da fuligem oriunda da queima, por outro, aumentou o emprego de defensivos bastante tóxicos. Males que, graças ao fogo não atingiam canaviais, passaram a recorrentes, como o ataque por cigarrinha das pastagens.

Sétimo maior trem do mundo transporta minério de ferro e passageiros no Brasil (Foto: Cristiano Oliveira/Flickr)

Não há uma semana em que não ouça alguém dizendo que falta transporte ferroviário no Brasil. Na verdade, o que falta é inovação no setor. Trens têm sua utilidade e, sempre que se tornam viáveis, ferrovias são construídas. De Carajás (PA) à São Luís (MA), o minério de ferro é transportado pelo sétimo maior trem do mundo. Ele tem mais de 3 km de comprimento e os últimos vagões são de passageiros. Dessa forma, evita-se que os vagões de minério, com mais de 40 t esmaguem os passageiros em caso de acidente.

Procedimento semelhante encontra-se no Outback australiano, com um trem de algo por volta de 7 km de comprimento. A estrada precisa ser reta, ou cujas curvas tenham raio maior que o comprimento do trem. Ainda na Austrália, há também comboios rodoviários com dezenas de carretas, algo inimaginável no relevo brasileiro com sua infinidade de morros.

Em todos esses casos, a carga tem valor unitário pífio e volume tão elevado que não justifique o emprego de transporte rodoviário. Tal seria transitarem-se medicamentos por via férrea. Para agravar a situação, as estações precisariam ser verdadeiros portos afastados do mar. Como se faz com os navios, seria necessária uma logística intermediária para consolidar cargas na entrada e fraciona-las na saída, inviabilizando o processo.

No caso da cana-de-açúcar, o transbordo, mesmo que auxiliado por tombadores (vídeo acima), tomaria um tempo que a Natureza não fornece à fermentação. O emprego do transporte ferroviário no setor promoveria um atraso capaz de reduzir significativamente a produtividade da indústria como um todo, pior que isso, sem reduzir o custo do frete intermodal.

Ferrovias não têm a capilaridade necessária ao setor e mesmo usinas que se encontrar literalmente sobre a ferrovia, como se vê em Penápolis (SP), usam trens somente para escoar o açúcar até o porto, mas ão para movimentar a cadeia produtiva à montante. Mesmo nesse caso, a tendência é a substituição de vagões graneleiros por outros do tipo plataforma para movimentação em container, como visto no capítulo anterior.

Mesmo aqui, onde os avanços já foram gritantes nos últimos trinta anos, há mito espaço para inovação, como se verá no próximo capítulo.

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.