51 mil km em 22 dias: o recorde lendário de um Willys Gordini

No dia 27 de outubro de 1964, há quase 59 anos, deu-se início a uma das mais longas e duras provas imposta a um carro nacional de grande produção. Um marco importante de nossa indústria automobilística, que mostrou ao mercado o valor do carro nacional produzido por nossa então jovem e valorosa indústria nacional de veículos.

O Gordini sofria preconceito quanto a sua durabilidade e confiabilidade. Nada melhor que colocá-lo em prática nas piores condições (Foto: Willys/divulgação)

A ideia do projeto iniciou-se no segundo semestre de 1964. Para acabar de uma vez com os comentários de que o Gordini não era um carro muito resistente, seu fabricante, sob licença, a Willys-Overland do Brasil, por sugestão do publicitário Mauro Salles, titular da agência de publicidade que tinha a conta da Willys e também uma espécie de conselheiro do presidente William Max Pearce, resolveu realizar um teste extremo: colocar um Gordini de linha para rodar por mais de 50 mil quilômetros sem parar, numa tentativa de recorde internacional oficial fiscalizada pela FIA (Federação Internacional do Automobilismo).

As paradas básicas seriam apenas para a troca do piloto, reabastecimento, verificação/troca do óleo do motor, água do radiador e pneus. Com tudo verificado, o carro partia novamente para a maratona, realizada no anel externo do circuito de Interlagos.

O carro junto dos pilotos da Equipe Willys (Foto: Willys/divulgação)

Aquele Willys Gordini bege era absolutamente original e foi escolhido ao acaso no final da linha de montagem da fábrica de São Bernardo do Campo (SP). Teve sua carroceria autografada pelos pilotos da equipe Willys que dirigiriam o carro ao longo dessa extenuante prova de 50.000 km — Wilsinho Fittipaldi, José Carlos Pace, Bird Clemente, Chiquinho Lameirão, Carol Figueiredo, Luiz Pereira Bueno, Geraldo Meirelles, e mais três pilotos convidados, Vitório Andreatta, Danilo de Lemos e Wladimir Costa.

Aqui, o carro já acidentado (Foto: Willys/divulgação)

A largada do início do evento ocorreu exatamente na data que havia sido marcada no ano de 1964. E se realizaria em sua totalidade apenas dentro do circuito de Interlagos, para que se tivesse o total controle de onde o carro rodava e sem a possibilidade de troca do veículo no transcorrer do teste. Além disso, todas as peças a serem trocadas nesses mais de 50 mil km, segundo o cronograma de manutenções do carro, seriam levadas dentro dele. 

Como o anel externo de Interlagos é uma pista de alta velocidade, o teste obrigava o Gordini e seu pequeno motor de 845 cm³ e 40 hp/32 cv a trabalhar quase que ininterruptamente perto de sua rotação de potência e velocidade máximas, uma exigência mecânica que poucos carros da época resistiriam de maneira tão brilhante. É bom salientar que o carro era dirigido por pilotos experientes que tiravam do carro o seu máximo desempenho.

Imprevistos acontecem: o carro capotou numa curva com Bird Clemente ao volante (Foto: Willys/divulgação)

Mas, como se sabe, uma prova com essa longevidade e altíssima rodagem está sujeita a todo tipo de imprevistos. E as coisas muitas vezes não acontecem como foram planejadas.

Quatro dias depois da largada, mais precisamente no dia 31 de outubro, o Gordini estava sob a tocada do competente piloto Bird Clemente. Por causa da chuva que havia caído nos dias anteriores, o asfalto estava sujo com pedriscos. Bird, ao passar sobre eles na Curva 3, final da grande reta, perdeu o controle do carro, que bateu no barranco que margeava a pista (ainda não havia guard-rail) e capotou. Já haviam feito mais de 3.200 voltas pelo anel externo de Interlagos e a prova não poderia ser suspensa.

Já haviam rodado mais de 3.200 voltas, ou seja, parar seria um desperdício (Foto: Willys/divulgação)

Como a prova estava sob supervisão da FIA, todas as regras das tentativas de recorde teriam de ser observadas, uma delas a de que, em caso de capotagem, o carro não poderia ser desvirado com auxílio externo. Mas o Gordini ficou com as quatro rodas no chão e, assim, pôde continuar.

Bird levou o carro ao boxes por meios próprios e, examinado pela engenharia da Willys, mostrou que sua mecânica estava intacta: apenas a lataria havia sido amassada, além do para-brisa e vidro traseiro quebrados. Depois de analisarem o carro, os técnicos concluíram que o teste poderia prosseguir. E assim foi feito.

Depois de desamassar um pouco sua lataria, o Gordini estava pronto para voltar às pistas (Foto: Willys/divulgação)

Mesmo com a lataria toda danificada, teto bem amassado e sem vidros, o teste foi reiniciado e o valente Gordini prosseguiu sua maratona. Imediatamente o carro foi batizado por aqueles que participavam do teste como “Teimoso”, pois não era uma batida com capotagem que conseguiria pará-lo.

O pequeno carro prosseguiu firme e forte por mais 18 dias nesse ritmo alucinante de teste. É difícil supor que um carro de produção normal destinado ao uso comum de famílias, tirado ao acaso da linha de montagem e lacrado pelo comissário da FIA, Paul Pierre Marcel Massonet, pudesse resistir bravamente a um teste de características tão destrutivas.

Totalizando 22 dias de duros testes, o Willys havia atingido a meta de 50.000 km, chegando a 51.233 km com a média horária global, isto é, sem descontar as paradas, de 97,15 km/h. Número expressivo para um carro de 118 km/h de velocidade máxima. Um sucesso absoluto! A prova foi completada no dia 17 de novembro de 1964.

Se não fosse o acidente, o carro terminaria a prova praticamente intacto. Aqui ele comemorava os 35 mil km (Foto: Willys/divulgação)

Se não fosse o acidente, o valente carrinho teria completado a prova perfeitamente, sem nenhum dano, como iniciou o teste. Mas o acidente serviu para mostrar também que o Gordini era muito mais valoroso do que o mercado faria supor.

O interessante é que sua teimosia em terminar o teste acabou por definir o nome da versão popular do Gordini que seria lançada logo em seguida: o Teimoso. É importante ressaltar que depois desse teste, o Gordini acabou colhendo o sucesso de sua ousadia: foram nada menos que 133 recordes totais, sendo 54 locais, 54 nacionais e 25 internacionais. Um sucesso absoluto, tanto na prova de resistência quanto na sustentação das vendas.

O Teimoso, versão básica do Gordini, ganhou seu nome graças à competição (Foto: reprodução/Pinterest)

O tal carro recordista? Depois da prova finalizada e toda a comemoração, o tal Gordini bege todo danificado sumiu nesse mundo. Especula-se que tenha sido guardado pela fabricante em algum local “secreto”, mas nunca mais deu as caras em momento algum. Veja abaixo um vídeo, mini-documentário, sobre o evento:

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.