Tecnologia e mercado, momentos de decisão (parte 3/3)

Desde os anos 2013, quando a Uber chegou ao Brasil, que se vem anunciando uma revolução na forma de se encarar o automóvel. Antes, ele era o símbolo da liberdade, era o jeito mais popular de se ir a lugares a que ninguém tinha ido, ou se já se fora, não de transporte coletivo. O automóvel construiu o mundo em que vivemos. A distância padrão entre cidades, por volta de 20 km, a que um cavalo poderia ir e voltar num mesmo dia, deixou de ser a configuração típica da ocupação humana. Cidades poderiam ser mais distantes entre si, como se vê no Centro-Oeste do Brasil, ou mesmo no Meio Oeste americano, mormente na ocupação da Austrália.

Desde a estreia do Uber no Brasil em 2013, a forma de se ver um carro mudou por completo (Foto: Scott Olson/Getty Images)

Também é o automóvel o responsável pela metropolização das regiões de colonização mais antiga, permitindo que, num mesmo dia, um cidadão de uma cidade faça compras num segundo município, almoce num terceiro e seja atendido por um médico numa quarta cidade, voltando à primeira para dormir. No fim do dia, não terá percorrido 100 km, quase o que um táxi percorre numa megalópole como São Paulo ou Rio.

O fato é que ter carro está ficando cada dia mais caro e seu aluguel está ficando cada vez mais popular. Seguro, licenciamento e estacionamento passaram a pesar significativamente no bolso do cidadão comum, que está ficando mais velho e mais preocupado com como viverá seus últimos dias. Some-se a isso a relutância do consumidor perante um altíssimo investimento, representado pela aquisição de um modelo elétrico, ou eletrificado, como se viu na matéria anterior. Não resta dúvida de que o que mais assusta é o carro ter deixado de representar reserva de valor, visto o tamanho do leque tecnológico que se nos vem apresentando nos últimos dez anos.

Ter e manter um carro está cada vez mais caro, enquanto os métodos de aluguel e leasing, por exemplo, tem se tornado cada vez mais populares (Foto: Hertz/reprodução)

Finalmente, surgiu um concorrente de peso, tanto em âmbito recreativo como de trabalho. É a internet que nos livra do deslocamento diário para o trabalho e, independentemente dele, dos deslocamentos fortuitos para reuniões e visitas comerciais. Até imóveis são vendidos a partir de fotografias e filmes disponíveis em sítios de corretores. A gente simplesmente não precisa ir lá, já que as impressões vêm a nós numa realidade mais que virtual, ampliada. Os simuladores de voo permitem viajar virtualmente por todo o planeta com paisagens repletas de realismo. Não dá para culpar a eletrificação da frota ou o advento da internet pelos abalos a que o mercado de automóveis está sujeito. É uma soma de fatores encabeçados pelo “usar em vez de ter”, a que chamamos de servicificação.

Tabela elaborada pelo autor

A tabela acima procura mostrar, hierarquicamente, como se organizam as opções do consumidor quanto ao acesso ao carro. A aquisição continuará preponderante por muitos anos, apesar de em declínio constante e acentuado. Hoje, ela se pode fazer antecipada, como nos consórcios; à vista, em que se inclui o faturamento em curto prazo; o financiamento por instituições financeiras e o leasing, que pretende travestir a venda em prestação de serviço. Quando é feita por pessoa física, não gera crédito de IPI ou ICMS, como acontece na compra por pessoas jurídicas que estejam registradas pelo lucro real. As pessoas com deficiência e os produtores rurais têm isenção de impostos com regras próprias, sendo atendidos como venda para frota.

Um método de aquisição que está migrando das aeronaves para os automóveis é a propriedade compartilhada, em que se constitui uma sociedade de propósito específico, ou um condomínio, para comprar carros, especialmente de luxo, a terem seu uso maximizado pelo compartilhamento. Essa modalidade tem um pé na aquisição e outro na prestação de serviço, pois o condômino usa o veículo que estiver à disposição, a não ser que reservado.

A prestação de serviço pode ser para uso público, por corrida, e privado, permanente. Para o público, temos o táxi, o Uber e derivados, como a DIDI chinesa, que adquiriu a 99 no Brasil. A DIDI, aliás, retomou o procedimento da Uber quanto aos veículos autônomos. Ao fazer convênio com fabricantes para desenvolvimento do carro autônomo, porém, com motorista, a intenção é depurar os sistemas de acordo com o histórico de intervenções humanas. Isso deve desembarcar no Brasil via BYD, como indica a imprensa internacional. Dessa forma, o aprendizado desenvolve-se exponencialmente, sem pôr em risco passageiros e transeuntes.

O DIDI D1, criado especialmente para o transporte por aplicativo, foi feito em parceria com a BYD e já roda em testes no Brasil (Foto: DIDI/divulgação)

O aluguel permanente considera o tradicional, em que o locatário fica com o veículo pelo período mínimo de um dia, podendo estender-se por anos, como na assinatura, também uma novidade. O que mais chama a atenção, porém, é o aluguel por horas, como para fazer uma visita ou ir às compras. Os carros ficam parados em postos de combustível, tendo suas portas abertas por aplicativo. As chaves ficam no porta-luvas e ele tem que ser devolvido no mesmo lugar com, no mínimo, um quarto do tanque, pois o combustível é incluso no aluguel.

Não me admiraria se, nos próximos anos, surgissem novas formas de acesso ao automóvel que, para muitos, continuará sendo um objeto de desejo, mesmo que seja só para usar.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.