Tecnologia e mercado, momentos de decisão (parte 2/3)

Tecnologia é a ciência aplicada. O fato de se ter descoberto o DNA nos anos 1950 era ciência pura. Era preciso encontrar meios economicamente viáveis para isolar e ler o DNA para que se transformasse em algo útil para o ser humano. Resumindo, para ser útil, é preciso passar da ciência para a tecnologia. Mas essa ideia não foi preponderante até meados do século XIX. Até então, bastava o conhecimento empírico, herança das corporações de ofício, que era como se organizavam os artífices da Idade Média.

Prova disso é que a primeira escola de engenharia do Brasil chamou-se “Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro”, fundada por D. João VI. Foi também o empirismo reinante no início da Revolução Industrial a causa de inúmeras mortes por explosões de caldeiras nas fábricas, especialmente da Inglaterra. Não havia engenharia de materiais, muito menos cálculos estruturais. Faziam-se as coisas conforme as tradições e, naturalmente, quando a escala cresceu, o resultado foi funesto.

Os trens foram fruto do mesmo empirismo. Rodas, só se conheciam as de carroças que, se não quebrassem, fariam as locomotivas atolarem-se, mesmo com tempo seco. Também nada de sistema de direção. Carroças e carruagens eram simplesmente arrastadas para os lados pela força dos animais de tração. Ora, se a intenção era justamente eliminar a tração animal, não faria o menor sentido depender dele para impelir a locomotiva para os lados. Era preciso encontrar um meio de as locomotivas contornarem curvas e o resultado foram os trilhos. Eles resolveram os dois problemas: o do atolamento e o da falta de esterço autônomo. De quebra, resolveu mais um: o do atrito dos vagões com o chão. Foi depois de os engenheiros assumirem o papel dos artesãos que se criou um sistema de esterço, porém, comandado pelos trilhos e não pelo condutor.

Depois, já sob a guarda dos engenheiros de verdade, os trens ganharam o sistema de esterço comandado pelos próprios trilhos (Foto: Cristiano Oliveira/Flickr)

Criou-se um paradigma tecnológico que, nos Estados Unidos, foi lentamente crescente até que o estado começou a subsidiar a colocação de novos trilhos, quando então explodiu. Essa explosão perdurou até o início d I Guerra, quando então decaiu ao residual, em relação ao novo paradigma tecnológico, que é o automóvel. Este já nasceu sob a égide dos engenheiros e a ciência passou a preponderar, ficando o empirismo em segundo plano.

Graças aos sistemas de controle, os carros elétricos passaram a se ter o mesmo rendimento do início ao fim da carga das baterias, o que indica que os motores elétricos formarão o novo paradigma tecnológico, restando dar-lhes a autonomia e a leveza que somente os combustíveis eram capazes de suprir. Para os engenheiros, abriu-se um leque de opções, que se podem organizar em forma de árvore como em um organograma, como na tabela abaixo.

No primeiro nível (azul), encontramos o automóvel em si. No segundo nível encontra-se a decisão por produzi-lo misto entre combustão e eletricidade (vermelho), ou adotar somente a eletricidade (verde). No terceiro nível, para os mistos, os engenheiros decidem entre tração compartilhada, que é quando o sistema elétrico faz parte da transmissão, como no Toyota Prius, ou no nosso Corolla; tração alternativa, quando o veículo tem um motor elétrico em um eixo e um à combustão no outro, adotado pela Volvo entre outros fabricantes; ou tração puramente elétrica, que são os carros que usam tração somente elétrica, enquanto o motor à combustão trabalha apenas como gerador, como nos prometidos pela Nissan e outros já adotados pela BMW.

Ainda no terceiro nível, abaixo dos puramente elétricos, encontram-se os com geração embarcada, que usam o hidrogênio para gerar a energia elétrica pela associação ao oxigênio, resultando em água e calor. Essa tecnologia, em um quarto nível, subdivide-se entre usar abastecimento com hidrogênio obtido autonomamente, ou usar membranas pra separar o hidrogênio de combustíveis já em uso (pilhas a combustível). Voltando ao terceiro nível, encontramos os veículos com geração externa, que são os a bateria. Abaixo deles, num quarto nível, ficam os com baterias substituíveis, adotados pela NIO chinesa, bem como os com baterias permanentes que parece tornarem-se os mais populares, pois todas as demais fabricantes adotam o método.

O SUV elétrico ES8, feito pela NIO, que já adota o método das baterias substituíveis (Foto: NIO/divulgação)

Seria possível criar um quinto nível em que se descrevem os combustíveis e os tipos de baterias, mas o número de combinações excederia o viável para um artigo digital. Só para os mistos, usando álcool, gasolina, diesel e os vários tipos de baterias do mercado, seriam mais de vinte combinações.

Para a geração de energia, o leque é outro, sempre passando pela transformação do movimento em eletricidade, exceto na geração fotovoltaica, cuja viabilidade é bem discutível, considerando-se o montante de energia consumida para a formação das células. Existem promessas como a geração via melanina e o grafeno, mas nada de concreto se fez. Tudo indica que o próximo passo na geração será a fusão nuclear, mas aí, só resta esperar.

Como se vê, existe um longo caminho até que se possa dizer que a tecnologia preponderante no século XX tenha sido superada. Resta saber se o mercado vai querer continuar comprando carros, ou se os vai alugar de acordo com suas necessidades, como se discutirá no próximo capítulo.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.