Lada Samara: a história do “popular russo” após a reabertura das importações

O Brasil viveu um atraso tecnológico sem precedentes nos anos 70 e 80. Em parte, a culpa foi das políticas adotadas pelo governo de Ernesto Beckmann Geisel, 29° presidente da República Federativa do Brasil. Ele assinou o Decreto-Lei Nº 1455 de 07/04/1976, que proibia a importação de mais de 300 mercadorias estrangerias, dentre elas, veículos e tecnologias. Começava ali um hiato de 14 anos de atrasos tecnológicos no setor, onde os quatro maiores fabricantes nacionais se desdobraram para fazer novidades de seus velhos produtos. Surgiam também várias outras marcas independentes, onde, devido a baixa escala, eram conhecidas como “foras-de-série”.

Os anos 80, últimos com as importações proibidas, foram pouco revolucionários para nossa indústria automotiva: as marcas precisavam trabalhar com o que tinham. O Opala, por exemplo, já somava duas décadas na mesma geração (Foto: Chevrolet/divulgação)

O objetivo deste decreto era incentivar a indústria nacional, mas não deu certo. Estagnou o segmento, atrasou o avanço da tecnologia e deixou o Brasil com uma frota desatualizada perante o mundo. Falando dos carros, mesmo com sucessos de lançamentos ditos mundiais, como GM Monza e Ford Escort, nosso mercado automotivo ainda estava atrasado. Em 1990, o 32º presidente eleito (por eleições diretas pós-regime) Fernando Affonso Collor de Mello, derrubou este decreto, reabrindo assim as importações. Com um discurso presidencial que comparava os carros nacionais às carroças, o mercado foi reaberto e inundado de novidades. O primeiro a desembarcar oficialmente foi o Alfa Romeo 164, um sofisticado sedan que custava US$135,000.00 (até caberia atualização monetária, mas garanto que na época já era bem alto).

O Alfa 164, já em outubro de 1990, começava a desembarcar em solo nacional (Foto: Alfa Romeo/divulgação)

Nesse meio tempo, houve também incentivos aos populares, e logo era lançado o Fiat Uno Mille, graças a uma redução de 40% para 20% na alíquota do IPI vigente, que viabilizou o lançamento do primeiro carro do povo dos novos tempos.

Enquanto isso, na Rússia, de olho em nosso mercado, a Lada apostava nas semelhanças entre nossos pavimentos (igualmente ruins) para desembarcar com seus produtos por aqui. Instalada em um país que até então era o maior estado da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a Lada fabricava o antigo Fiat 124 como sedan 2107 (chamado de Jiguli por lá), além da wagon 2105, o off-road Niva e o hatch Samara, este, escolhido para estrear a linha russa no Brasil, no final de 1990. As operações nacionais da marca já existiam desde julho daquele ano.

Mas quem debutou primeiro por aqui foi o Samara, hatch desenhado por Giugiaro e projetado em parceria com a Porsche (Foto: Lada/divulgação)

Projetado sob os olhos da Porsche (que prestou consultoria a Lada no projeto e até testou alguns protótipos na Alemanha) e com design de Giorgetto Giugiaro, também pai do VW Passat, o Samara foi lançado em 1984 como Sputnik ou VAZ-2108 no mercado soviético. Tinha linhas modernas, bastante retas, com frente baixa, para-choques envolventes e uma boa área envidraçada, lembrando muito o próprio Passat em suas primeiras gerações. O Lada usava uma plataforma antiga da Fiat e tinha uma mecânica antiquada, mas era espaçoso, confortável e agradou o brasileiro, afinal, era uma marca nova trazendo um carro inédito em um país carente de novidades.

Tinha bom espaço interno, inclusive no banco traseiro, e um razoável porta-malas de 300 litros (chegando a 650 se o banco traseiro fosse rebatido). Seu comprimento era de 4,00 m, com distância entre-eixos de 2,46 m (praticamente o mesmo do último Gol), e 1,75 m de largura. Os Samara importados para o Brasil tinham dois motores e duas configurações de carroceria, sendo 3 ou 5 portas. Com motor 1.3, intitulado 1300, era um carro de 64,5 cv de potência a 5500 rpm e 10,0 kgfm de torque a 3400 rpm, capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em 16,0s e atingir 148 km/h de velocidade máxima (dados oficiais). As versões 1.3 eram identificadas pela grade dianteira preta, sem pintura, e de desenho mais simples.

Econômico e leve, com não mais que 950 kg, o hatch russo com motor 1.3 atraía também pelo baixo consumo de gasolina segundo os dados de fábrica: 11,9 km/l urbano e até 17,5 km/l rodoviário (medido a 90 km/h constantes), ou 10,6 km/l na cidade e 16,3 km/l na estrada segundo testes da revista Quatro Rodas da época. A Lada do Brasil até oferecia vantagens a motoristas que rodavam bastante com seus Samara, caso dos taxistas, permitindo a adaptação de GNV nos carros sem a perda da garantia de fábrica, através de uma parceria com uma empresa do ramo de gás natural veicular da época. Com GNV, a tendência era que os Samara 1.3 ou 1.5 fizessem seus motoristas gastarem ainda menos dinheiro com gasolina.

Já o motor maior era um 1.5, intitulado 1500, com 72 cv a 5500 rpm e 12 kgfm a 3400 rpm, capaz de levar o Samara de 0 a 100 km/h em 13s, correndo até os 155 km/h de velocidade máxima. Embora oficialmente a Lada do Brasil falasse em um consumo de gasolina levemente inferior ao dos modelos 1.3 (11,6 km/l na cidade e até 16,9 km/l na estrada), para a revista Quatro Rodas o modelo 1.5 era considerado ainda mais econômico, afinal chegou aos 10,4 km/l urbano e 16,2 km/l rodoviário nos testes da época. Na prática, um carro com consumo igualmente bom, porém com melhor desempenho. Nesse caso, os carros 1.5 já traziam uma grade dianteira pintada e mais bonita.

Por dentro, o acabamento do Lada era considerado bom, afinal, o VW Gol CL, o carro mais vendido da época, usava uma forração de porta de papelão revestida em courino com costura eletrônica, sem porta-trecos e sem nenhum isolamento acústico. Nem é preciso citar como era o Fiat Uno Mille né?! Por essas e outras, em um mundo de populares nacionais tão simplórios (para não escrever outra palavra), o Samara se destacava nesse ponto.

De série nele, cintos de segurança dianteiros e traseiros com três pontos de fixação e sistema autorretrátil, vidros laminados, ventilador com 3 velocidades, ar quente, retrovisores externos com regulagem interna manual, limpador e desembaçador traseiro, interior cinza claro em tecido, volante espumado de 2 raios e até regulagem interna de altura dos faróis. A lista de opcionais se restringia à motorização, quantidade de portas e as várias opções de cores: vermelho rubi, branco sólido, azul marinho, azul celeste metálico, vinho sólido ou metálico, verde metálico, marfim (só nos carros 1.3), bege claro (só nos Samara de cinco portas), cinza claro, preto e cinza chumbo (estas só para as unidades 1.5).

Apesar das virtudes, faltava qualidade nos Samara, e em pouco tempo o modelo já recebia críticas frequentes de seus proprietários e até mesmo de jornalistas automotivos. Fosse o cheiro interno do veículo, que era desagradável devido ao uso de uma cola de baixa qualidade, a difícil calibração dos pneus por conta da adaptação de calotas nacionais não homologadas (fabricadas pela DiFatto), ou o acabamento interno frágil, que se quebrava com facilidade, o hatch russo tinha problemas.

A Quatro Rodas o submeteu ao seu teste padrão de 60.000 km, e no final as manivelas dos vidros quebraram pelo menos três vezes, existiam falha nas bobinas, engate difícil de marchas, abertura involuntária da tampa do porta-malas devido a trepidação, queima de fusíveis, queda do retrovisor interno, infiltração de água e pó pelas portas e porta-malas, entupimento do esguichador de água do para-brisas, soltura dos parafusos das dobradiças das portas, estouro do reservatório de expansão do sistema de arrefecimento, sem falar no desgaste prematuro de embreagem, infindáveis falhas de carburação ou mesmo problemas de lubrificação, que levavam ao desgaste prematuro de bronzinas, virabrequim, paredes do bloco do motor, entre outros.

A unidade que participou do teste de longa duração da Quatro Rodas teve problemas para dar e vender (Foto: Antonio Rodrigues/Quatro Rodas)

As reclamações não paravam, com relatos constantes de falta de peças de reposição e despreparo da rede de 126 concessionárias. Além disso, as autorizadas, possivelmente instruídas por recalls silenciosos, ocultavam os serviços realizados nos carros. Como exemplo, chegaram a trocar por três vezes o motor do carro do teste da Revista Quatro Rodas sem nenhum registro no manual, que, aliás, indicava troca de óleo a cada 15.000 km (!). Naquela época, o número do motor ainda não era registrado no documento do veículo, e muitos destes carros que passaram por suas revisões tiveram seus motores trocados sem a ciência dos proprietários. A garantia de fábrica da Lada, de até 1 ano após a data da venda, acabava rápido demais frente aos vários vícios do Samara.

Falta de peças no pós-venda e rede de concessionárias despreparada também eram reclamações frequentes dos proprietários dos Samara na época, enquanto a garantia de fábrica da Lada não passava de 1 ano (Foto: Lada/divulgação)

Em 1991 desembarcava mais uma versão, a sedan, com um design que não agradava pela ausência de harmonia e proporção. O Samara Sedan, devido ao preço alto, também fazia com que os clientes optassem pelo 2107, o Laika. Nem mesmo os valores similares aos dos populares e opções de carroceria atraiam mais proprietários para a marca, e o Samara teve uma queda considerável de vendas a partir do terceiro ou quarto ano consecutivo da Lada no Brasil.

Segundo dados da época, foram 6000 unidades trazidas em 1990, seu primeiro ano, enquanto o total de vendas do Samara no Brasil foi de cerca de 25.000 carros. Quantos sobraram? Há atualmente o registro de apenas 1083 unidades de 1990, 1274 unidades de 1991, 54 unidades 1992, 228 unidades 1993, 41 unidades 1994 e 5 unidades 1995, ano em que o modelo foi oficialmente tirado de linha no Brasil, segundo números do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito). Pouco mais de 10% deles segue rodando, ou pelo menos registrado…

Achar uma unidade original e em pleno funcionamento é quase impossível, afinal, o Lada se tornou bastante desvalorizado, e devido à falta de peças, teve sua mecânica original substituída por componentes da Fiat ou Ford (o que inclui os motores). É difícil achar um com a atual placa Mercosul, e até agora desconhecemos um Samara que ostenta as placas pretas de coleção e originalidade no Brasil. Virou história, literalmente.

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Leonardo França é formado em gestão de pessoas, tem pós-graduação em comunicação e MKT e vive o jornalismo desde a adolescência. Atua como BPO, e há 20 anos, ajuda pessoas a comprar carros em ótimo estado e de maneira racional. Tem por missão levar a informação de forma simples e didática. É criador do canal Autos Originais e colaborador em outras mídias de comunicação.