ICMS sobre combustíveis, como será?

Dia 10 de março de 2022, desceu do Senado federal para a Câmara dos Deputados o PLP (Projeto de Lei Complementar) 11/2020, que dispõe acerca do ICMS cobrado sobre combustíveis. Trata-se da redação mais confusa, até contraditória que li nos últimos anos. Sim, há muitas outras peças parlamentares de redação ruim, mas esta está no topo da pirâmide. Vamos analisar cuidadosamente, a começar com a situação que promoveu sua tramitação.

Desde 1997, o ICMS sobre combustíveis vem sendo cobrado por substituição tributária. Isso significa que o imposto, para evitar evasão é cobrado na origem, ou seja, na distribuidora, sobre um preço fictício ao varejo, que nunca correspondeu à verdade. O Rio de Janeiro é o campeão dessa cobrança, tanto em alíquota como em valor da pauta. O mecanismo todo está esmiuçado numa matéria que publiquei no Best Cars Web Site.

Há casos em que o valor de pauta é o dobro do efetivamente praticado nas bombas, punindo fortemente o consumidor. Nada mais justo do que pleitear que essa farra acabe. Houve quem defendesse o fim da substituição tributária para que o ICMS fosse cobrado sobre o valor efetivamente praticado venda a venda. Os administradores não gostaram nada da ideia, alegando que o valor poderia ser adulterado, e a arrecadação ocorrer sobre um valor fictício menor, bem como sobre uma quantidade inferior à real. Optou-se por manter a substituição, alterando as regras para o cálculo do valor de pauta.

O Rio de Janeiro é campeão na cobrança de ICMS sobre combustíveis (Foto: Aline Massuca/Metrópoles)

O que desceu do Senado para a Câmara prevê um valor unificado de ICMS, cuja alíquota incidirá sobre a média dos valores efetivamente cobrados na média dos dois exercícios anteriores ao cálculo, o que tiraria o caráter “ad valoren” da cobrança do imposto. Isso faria com que as variações fossem amortecidas e não ampliadas pela ganância do administrador.

Hoje, quando o preço dos combustíveis entre a refinaria e a distribuidora cai, o consumidor continua pagando o ICMS sobre o mesmo valor de pauta estabelecido pelo Executivo. O PL complementar institui duas inovações importantes: A primeira é que o valor de pauta e a alíquota deixam de ser fixadas pelo executivo de cada estado, passando a alvo de decisão legislativa estadual com participação federal, e a segunda, mais importante, exige que o percentual do ICMS sobre o preço de venda não exceda a alíquota estabelecida.

Isso significa que, caso o preço baixe, o imposto tenha de ser reduzido também. Analisemos via um exemplo exagerado para facilitar o entendimento. Suponhamos que, em dado estado, o preço médio de venda nos últimos dois anos seja de R$5,00/l e a alíquota seja de 20%. O imposto será fixado em R$1,00/l. Se o preço subir para R$6,00, o imposto continuará de R$1,00. Se, ao contrário, o preço cair para R$4,00, para não exceder os 20%, o imposto cobrado seria de R$0,80/l. Isso restitui a característica “ad valoren” ao tributo, contrariando as suposições do legislador.

Caso o preço do combustível baixe, o imposto baixa junto (Foto: VW/divulgação)

As dificuldades não param aí. Para piorar, não se sabe se os R$5,00 imaginados acima incluem o frete da refinaria até a distribuidora e da distribuidora até o posto. Assim, o executivo pode falsear números para estabelecer o preço efetivo como base para a média de preço, anulando o efeito da nova lei.

O texto não deixa claro como serão apurados os impostos devidos no caso de um posto fazer uma promoção e o percentual do imposto exceder, somente naquele estabelecimento, o percentual estipulado pelos legisladores. Haverá alguma compensação? Se não houver, a concorrência fica inexoravelmente prejudicada. Se houver, o caráter de substituição tributária fica indelevelmente manchada.

A redação tem vícios grosseiros, que deixariam envergonhado qualquer aluno de 8ª série de um colégio razoável. Aqui transcrevo:

“§ 3º Os Estados e o Distrito Federal, ao definirem pela primeira vez as alíquotas específicas, não poderão exceder, em reais por litro, ao valor da média dos preços ao consumidor final usualmente praticados no mercado considerado ao longo do período de 24 (vinte e quatro) meses entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020 multiplicada pela alíquota ad valorem aplicável ao combustível em 31 de dezembro de 2020, independentemente da data de publicação do ato normativo que as definir.”

Alíquotas são forçosamente percentuais, portanto, para que a peça se torne minimamente inteligível, teria de ser redigida  novamente desde o marco zero. Onde está o sujeito de “não devem exceder”? Pelo que está no texto, dá a entender que os legisladores, quando a intenção oculta – e bem oculta- é que seja o percentual, simultaneamente ao valor máximo.

Numa análise fria, considerando somente o texto, sem contextualizá-lo, o que se fez foi manter o caráter ad valoren do imposto, porém, impondo-lhe um teto correspondente à sua aplicação sobre a média de preços dos dois anos anteriores. Seja pelo conteúdo, seja pela forma, conquanto se deva elogiar a boa vontade dos legisladores, o projeto traz mais perguntas do que oferece respostas. Que a Câmara dos Deputados se apiede de nossos cérebros.

Que a câmara dos deputados se apiede dos nossos cérebros… (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.