Ford vs. Ferrari: o dia que o Oval Azul americano bateu o Cavalinho Rampante italiano

A história é implacável, e não esquece fatos memoráveis como esse: a mundialmente poderosa Ferrari e seus carros esportivos foram humilhados pela Ford, americana especialista em veículos familiares. Tudo começou lá pelo início dos anos 60, quando Henry Ford II, neto do criador de um dos maiores fabricantes de carros do mundo, achou que aquele era o momento de investir no mercado europeu do pós-guerra. Para isso, queria uma marca de muito prestígio para alavancar as vendas de seus familiares para o consumidor do Velho Continente. Além disso, era meta abafar o sucesso do Corvette, da arquirrival GM.

Enzo Ferrari (esq.) e Henry Ford II (dir.) eram amigos (Foto: reprodução/Forbes)

Como tinha uma relação de amizade com Enzo Ferrari, o todo poderoso da marca italiana, Ford II entrou em negociação com Enzo para adquirir o controle acionário da Ferrari e, dessa forma, usufruir do prestígio mundial dos carros italianos, conseguir novas tecnologias de ponta para seus carros e, ao mesmo tempo, obter o respeito do consumidor europeu, que se curvava diante do tal Cavalinho Rampante. Tudo certo, valores acordados, detalhes contratuais resolvidos pelos advogados, bastava apenas a assinatura de Enzo Ferrari para o negócio ser concretizado.

Ferrari tinha valor também nas pistas de competição, e Enzo sabia muito bem disso (Foto: reprodução/lemans.slot-racing.fr)

Mas, como todo bom italiano temperamental, de última hora Enzo disse que não venderia sua marca, pois acreditava que, assim, perderia o controle daquela fabricante que criou e fez vitoriosa durante anos. A venda da Ferrari para a Ford estava cancelada! Esse fato deixou Henry Ford II possesso, muito irritado, pois já havia toda uma estratégia de marketing criada sobre esse negócio. Estávamos no início dos anos 60 e Ford II não se deu por vencido: virou uma questão pessoal ter um carro que pudesse bater as poderosas Ferrari nas pistas de corrida e a GM no grande público.

Só para que se tenha uma ideia, uma das corridas de velocidade e resistência mais famosas do mundo era a 24 Horas de Le Mans, evento esportivo que a Ferrari havia vencido desde 1960 até 1965, todas as etapas. A marca italiana não tinha adversários.

Ferrari 275 P_ vencedor de Le Mans em 1964 pilotado pelo francês Jean Guichet (esq,) e o italiano Nino Vaccarella (Foto: reprodução/Motor Sport Magazine)

Construir um carro que batesse as Ferrari nas pistas do dia para a noite, era praticamente impossível, tamanha a experiência e o know-how que a marca italiana havia adquirido nas competições. Nos EUA, os norte-americanos eram bons de fazer carros de uso diário para a família, mas estavam longe dos esportivos de corrida. Isso era coisa de europeu. Henry Ford II tentou inicialmente com Collin Chapman, mago das tecnologias de carros de competição e dono da Lotus, que foi o primeiro a ser consultado: ele poderia, a pedido da Ford, construir um carro especialmente projetado para as provas de endurance da época?

Projeto da inglesa Lola era interessantíssimo, e acabou virando o GT40 (Foto: Ford/divulgação)

Chapman, muito envolvido com sua recém-criada equipe de Fórmula 1, negou, não tendo tempo para atender os anseios da Ford. Aí foi a vez da marca inglesa Lola Cars, famosa na Europa por fazer bons carros de corrida. Coincidência ou não, em 1962 a Lola tinha terminado um projeto revolucionário: um de seus jovens projetistas havia concebido um carro cujo chassi, ao invés do tradicional tubular da época, era de um monocoque em alumínio, uma espécie de caixote de liga-leve estruturalmente rígido e com pouca torção de sua carroceria.

A compra do carro “pronto” fez bem ao bolso e cronograma da Ford (Foto: reprodução/Top Gear)

Além disso, o câmbio era disposto atrás do eixo traseiro e o motor entre os eixos, ficando atrás do piloto. Uma configuração que, na época, era bem inovadora, depois se estendendo a maioria dos carros de corrida destinados à esse fim. Pois bem, esse carro, que era para ser o novo veículo de competição da Lola, acabou tendo seu projeto vendido para a Ford, rebatizado de GT40 (Grand Touring com 40 polegadas de altura). Comprando um projeto pronto, a Ford economizou mais de US$1,7 milhão da época e bastante tempo.

GT40 entrou para as pistas entre 1963 e 1964, mas sem muito sucesso (Foto: Ford/divulgação)

Inicialmente, foi adotado na mecânica do carro um V8 que vinha do sedan Fairlane, de bloco em alumínio e 4.2 litros. O câmbio era concepção da italiana Colotti, manual de 4 marchas. Vale ressaltar que as primeiras unidades do GT40 foram construídas na Inglaterra pela Lola, sob encomenda da Ford e seguindo as especificações da marca americana. Depois de muitos testes e solucionados alguns problemas, o famoso Ford GT40, que tinha a pretensão de bater as Ferrari, estreou nas competições, mas sempre com resultados tímidos.

Depois dessa, Ford II optou por trazer para o time de desenvolvimento do carro ninguém menos que Carroll Shelby, um dos grandes pilotos americanos do final dos anos 50 e início dos anos 60, reverenciado mundialmente por suas qualidades de piloto e, principalmente, por conhecer profundamente os automóveis e seu funcionamento. Isso sem falar no projeto Shelby Cobra, de sua execução, e a experiência na Le Mans de 1959, da qual saiu-se vencedor com um Aston Martin.

Ele opinou, modificou e melhorou diversos pontos do projeto do Ford GT40, inclusive adotando um novo motor V8 de 7 litros, oriundo do Galaxie e que Carroll utilizava também em seu esportivo Cobra. Com o novo e grande V8, foram necessárias diversas alterações no projeto original do carro, que precisou ser alongado e alargado para receber o 7.0 e seu bloco em ferro fundido. Dois chassis, desmontados, cortados e soldados em março de 1965, foram os primeiros protótipos do GT40 MKII, com o novo motor V8 7.0.

V-8 7.0 não podia passar dos 6.250 rpm para preservar o câmbio manual de quatro marchas (Foto: Ford/divulgação)

Mesmo utilizando um câmbio reforçado de quatro marchas, o novo motor precisou ser contido em sua potência e torque máximos, tudo para que a transmissão aguentasse a cavalaria do enorme V8. Apesar de produzir 485 hp a 7.400 rpm, os técnicos, para preservar o câmbio, optaram por reter o regime de rotações máximo para 6.250 rpm, e, dessa forma, garantiam a durabilidade da transmissão. Sobrava motor e faltava câmbio. Mesmo assim, segurando a rotação, eram 463 hp, número mais do que suficiente para uma performance brilhante.

Carroll Shelby (esq.) também guiava os GT40 (Foto: Shelby/divulgação)

Shelby, além de comandar a equipe que trabalhava em todas essas alterações, também pilotava os GT40: por sua elevada estatura, ao redor dos 1,9 m, os carros precisavam ter um ressalto no teto, na área da cabeça do piloto, para acomodar seu capacete. Além do Cobra, esse mesmo motor também estava na Nascar americana, sempre com muitas vitórias.

Bons resultados logo vieram: em meados da década de 60, o GT40 já começava a mostrar um bom potencial, tendo vencido sua primeira corrida em Daytona, em 1965. As primeiras unidades prontas foram para Le Mans de 1965 nas mãos de equipes particulares. Nenhum dos carros inscritos terminou a famosa prova do calendário mundial em resultados de destaque, para a infelicidade de Shelby, Ford II e toda a equipe.

Os GT40 MKII ganharam em Daytona de 1965, mas não em Le Mans. Por essas e outras, Henry Ford II quase abortou o plano inteiro (Foto: Ford/divulgação)

A Ferrari? Venceu ocupando as três primeiras colocações do pódio. Duas com a 250LM e a terceira com a 275 GTB, as três movidas por um V12 de 3.3 litros que geravam cerca de 320 hp. Uma humilhação para a Ford, sonhadora de bons resultados com o GT40 e seus 463 hp. Na época, Henry Ford II ficou tão chateado que chegou até a falar em encerrar o projeto do carro esportivo, desistindo do famoso embate com a marca italiana.

GT40 MKII e seus 470 cv desapontaram não pela potência, mas durabilidade durante a prova de longa duração (Foto: Ford/divulgação)

Seus conselheiros, por outro lado, foram sábios: apesar da derrota de Le Mans com o GT40 em 1965, nos treinos classificatórios o Ford havia dado um show, mostrando tempos bem superiores aos da Ferrari. Era um baita potencial do novo carro. Os treinos e os desenvolvimentos não pararam até junho de 1966, data da prova de Le Mans daquele ano. Os GT40 MKII aí estavam bem afiados, prontos para o embate direto com a Ferrari.

Para a Le Mans de 1966 os carros da Ford estavam no ponto certo e prontos para combater os Ferrari (Foto: Ford/divulgação)

Naquele evento, até Henry Ford II estava presente para ver as corridas ao vivo, todos queriam ver a competição e a expectativa era grande, afinal a Ferrari havia vencido as seis Le Mans anteriores. Só para que se tenha uma ideia, havia um time de cerca de 100 pessoas levadas pela Ford, sete carros (um de reserva), nove motores e 21 toneladas de peças de reposição! A Ford chegou para vencer e ofuscar as seis vitórias anteriores da Ferrari.

1966 foi um ano mais que memorável para o GT40. Na foto, a trinca campeã recebe a bandeirada final (Foto: Ford/divulgação)

Depois de 24 horas de uma extenuante corrida que junta velocidade, resistência mecânica, consumo de combustível e pneus, além da sorte, a Ford coroou seu GT40 MKII com os três primeiros lugares na famosa prova mundialmente consagrada. No carro campeão estavam os experientes pilotos Bruce McLaren e Chris Amon. E para não deixar barato, o GT40 venceu a prova em 1967 com a dupla americana Dan Gurney/A. J. Foyt, em 1968 nas mãos de Pedro Rodriguez/Lucien Bianchi e, finalmente, em 1969, guiado por Jacky Ickx e Jackie Oliver. Vale falar também que em 1969 foi o último ano de produção do GT40 original. Literalmente, despediu-se vencedor.

Henry Ford II finalmente se orgulhava daquela empreitada toda (Foto: Ford/divulgação)
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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.