O Carro Autônomo e a democracia
Cada dia que passa, mais eu ouço a reclamação de que os motoristas deixaram de usar as setas, prejudicando o trânsito de automóveis e de pedestres. Existe um componente interessante nisso, o GPS. Agora, quando tomo um Uber ou um táxi, peço que ligue a voz do aplicativo de GPS e fico observando se o motorista deu ou não a seta quando o aplicativo indicou alguma conversão. Se o motorista não tiver dado, chamo a atenção. Geralmente, ouço: “Nossa! Vou prestar mais atenção”. O pior é que, mesmo usando o sistema nativo, próprio da multimídia do carro, as setas não são automatizadas, o que poderia ser um avanço, a caminho de um retrocesso no que tange à liberdade de ir e vir.
Os economistas chamam a liberdade de “restrição orçamentária”. Ao contrário dos filósofos positivista, para o economista, o limite da liberdade não é a liberdade dos outros; mas sim o montante de dinheiro que o indivíduo tem para gastar. Isso engloba direitos inalienáveis como o de ir e vir. Sim, se o camarada não estiver preso, tem o direito de ir para onde quiser, desde que a pé porque, por qualquer outro meio, só vai se tiver dinheiro. Olhe que nem se está pondo em causa os limites institucionais como o uso de passaporte para deixar o país, ou a obtenção de visto para entrar em outro.
Supondo que o cidadão tenha dinheiro para comprar ou alugar um carro. Além de arcar com seu combustível e pagar pedágios, o carro deu outra perspectiva ao direito de ir e vir. Autores do século XIX, dos dois lados do Atlântico, diziam que o trem tinha inaugurado a era das viagens. Pode ser, mas o automóvel de passeio transcende o ato de viajar. Ele dá meios para que o relacionamento humano saia do bairro e vá para quilômetros além. Pessoas podem ter amigos íntimos a centenas de quilômetros, coisa inimaginável mesmo com a existência dos trens, dos navios a vapor e, pensando bem, até do avião, pois são todos meios de transporte destinados às viagens prioritariamente.
O carro autônomo está pondo essa liberdade em risco. Nâo que que o círculo de amizades tenha-se reduzido. Ao contrário, com o advento da Internet ele se tornou global. Em outro espaço, discutiu-se o papel do protocolo de transmissão de dados de quinta geração, conhecido como 5G, para dar concretude à eliminação radical dos motoristas, tornando os automóveis de fato autônomos. É que, para transformar a probabilidade de acidentes em uma potência negativa, algo como 10 elevado a -1000, é preciso que os automóveis conversem entre si, tal que cada um saiba o que os veículos à sua volta pretendem fazer.
Seria mais ou menos como o papel das luzes de freio ou das luzes de seta, mas em âmbito digital. Tudo isso pressupõe que os automóveis se identifiquem, ou seja, que eles todos tenham chapas, ou identificações, digitais.
Toda essa modernidade traz consigo a incapacidade de alguém ir e vir sem que outro saiba, mais ou menos como se o First Mile, que está no olho do furacão da arapongagem, fosse institucionalizado. Claro que isso está distante, posto que a frota precisaria ser atualizada para que essa comunicação se dê em escala universal. Melhor, que essa vigilância dependa do automóvel, pois ela já se pode fazer a partir do celular numa dimensão muito menor, porém, igualmente palpável e deletéria.
Antes de essa matéria ser chamada de distopia, ou de uma imitação de Stephen King, cabe lembrar que não faz vinte anos que os aparelhos de GPS foram incorporados aos celulares. Seu uso depende de dois protocolos, simultaneamente: o do GPS em si, que tem uma precisão limitada, e o do próprio celular, que, para esse fim, é o GPRS, uma derivação do GSM. Essa camada triangula a posição do aparelho em relação às antenas, aumentando significativamente a precisão. Para informações de trânsito, o sistema tem que estar ligado à Internet.
Nos três casos, a identificação é imprescindível, o que implica em que alguém possa rastrear o indivíduo, hoje, pelo celular, amanhã, pelo automóvel em conjunto. Será possível identificar todos os seus ocupantes, de sorte que seja possível saber onde o leitor está, como e com quem ele está.
Rudolph Steiner, médico e educador alemão que criou o sistema Waldorf de ensino, também denominado antroposofia, dizia que a tecnologia deveria ser entendida antes de ser usada. Contam-se nos dedos os usuários de automóveis, computadores e internet que tenham a mais mínima ideia de como todo esse aparato funciona. A inovação será sempre bem-vinda, desde que saibamos lidar com ela.
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