A indústria de automóveis e a reindustrialização do Brasil
Anos atrás, noutro espaço, em 2019, publicou-se uma matéria deste autor em que se procuravam descrever algumas razões para a desindustrialização no Brasil, especialmente, no setor automobilístico. Nesta matéria, será proposta uma sequência de passos que podem ajudar a reindustrializar o país. Esse setor foi o escolhido porque automóveis são os bens de consumo durável mais complexos feitos em série.
A tecnologia embarcada engloba todos os setores do desenvolvimento industrial, indo dos materiais mais sofisticados à eletrônica mais avançada, passando pelo investimento em software. Absolutamente todos os dispositivos eletrônicos ou de servo-assistência elétrica têm inteligência incorporada ao seu funcionamento. Quando se fala em direção eletricamente assistida e indexada à velocidade, simplifica-se o que não é nada fácil.
O dispositivo precisará ser informado sobre a velocidade em si, acrescida do raio da curva momento a momento, além de dados sobre os esforços adicionais aplicados ao conjunto. Eles podem ir da inclinação da pista até a variação de pressão nos pneus. Tudo isso tem que funcionar em harmonia. O trabalho de calibração feito por engenheiros na fábrica de automóveis é apenas o último passo, todos os outros foram dados ao longo da cadeia de produção.
O mesmo se dá com os freios ABS, cujo funcionamento enseja a adoção de funções extremamente úteis sem que nenhuma peça a mais seja adicionada ao veículo. Exemplo disso é o conhecido hill holder, que impede que o carro escorregue para trás nas largadas em subida. O mesmo circuito que evita o travamento das rodas é responsável por manter a atuação dos freios pelo tempo necessário à um arranque seguro. Exemplos assim existem aos montes.
Ainda em outro espaço, publicou-se outra matéria que definia um cluster de produção e discutia a necessidade de racionalizar espacial e logisticamente as cadeias de produção. Só assim pode-se chegar à vantagem competitiva capaz de manter o Brasil entre os dez maiores produtores de veículos do mundo. É que, como discutido em matéria publicada em 2020, a indústria de automóveis, graças à sua escala, viabiliza outros ramos da indústria que compartilham componentes.
O parque industrial vai desde as máquinas agrícolas aos aviões, passando pela indústria bélica. Essa indústria adjacente também gera tecnologia que pode realimentar a indústria de automóveis, num ciclo virtuoso cuja manutenção cabe ao Estado e a execução à iniciativa privada. Sem a presença do Estado, as cadeias vão-se quebrando porque deixa de haver quem amorteça as pressões externas sobre o custo de contrato.
Essas pressões foram potencializadas pela revolução logística que presenciamos nos últimos trinta anos, reduzindo constante e substancialmente o dispêndio com frete, o que favorece a concentração espacial da indústria. Políticas protecionistas como “Buy américa”, de John Biden, usa o Estado americano para frear, quando não reverter, o fenômeno da peregrinação das atividades econômicas pela face do globo. Esse talvez seja o maior desafio à reindustrialização porque é a vez de a China e a Índia industrializarem-se como, um dia, ocorrerá também com a África.
O primeiro passo para reindustrialização é a oficialização de um exim bank, cuja função é financiar o comércio internacional. O Brasil já teve algumas formas de financiamento às exportações pela Cacex (Carteira de Comércio Exterior) do Banco do Brasil. Ele atuava via adiantamento de contrato de câmbio, o que permitia que as empresas brasileiras dessem prazo de até 180 dias a seus clientes, mediante carta de crédito no país de destino.
Houve também o financiamento de obras no exterior, desde que os serviços de engenharia, bem como o maquinário fossem brasileiros. Ambos métodos fomentaram a indústria, mas podem não ser efetivos hoje, quando as vendas diretas ao consumidor final é avassaladoramente crescente. É, portanto, preciso pensar em mecanismos de financiamento direto ao consumidor, esteja ele onde estiver.
O segundo passo é mitigar o risco do financiamento aos arranjos produtivos nacionais, tal que eles não precisem trabalhar com capital próprio. Mecanismos como desconto de recebíveis não são suficientes porque eles não financiam a produção, mas antecipam recebimentos sobre vendas já ocorridas, quando o capital próprio já foi desembolsado. O terceiro passo é mudar a forma de cálculo do índice de nacionalização, passando de pela relação preço volume para a parcela da engenharia do produto que se deveu a empresas brasileiras. Isso permitiria que o valor agregado dos bens financiados aumentasse por evitar-se o pagamento de royalties ao exterior.
O quarto passo é obrigar todas as empresas com capital aberto no país de origem a abrirem seu capital aqui, permitindo que a poupança interna possa financiá-las, ao mesmo tempo em que o custo de abandono aumenta consideravelmente. Isso, além de dar transparência aos números da indústria, sujeitando-as às nossas regras de compliance, impede que ameacem de fechar suas portas o tempo todo. Ou a empresa vem para ficar, ou é melhor não vir.
Permeando todas as medidas anteriores, é preciso fortalecer o mercado interno, seja pela redução dos juros, seja pela distribuição de renda, pois, em última análise, o consumo interno é o esteio do comércio internacional. Este último não se pode desprezar, já que corresponde a 97% do mercado. As ameaças são muitas e o e o esforço hercúleo, mas não impossível.