Da lancha ao quintal, não há nada igual

Foto de capa: reprodução/Vintage Boats

No início dos anos 1970, quando Tim Maia cantava “Do Leme ao Pontal, não há nada igual”, a concentração de renda era muito maior, embora muito menos sentida que hoje. É que a população rural ainda era significativa. A fome no campo passava despercebida a quem vivesse nas cidades. Os adolescentes privilegiados faziam jus a esse epíteto com uma liberdade que a civilização extinguiu.

Rua Augusta era um dos points preferidos para quem fazia a tal Roleta Paulista (Foto: reprodução/internet)

A falta de respeito às regras traduzia-se em práticas inimagináveis hoje, como a tal “Roleta Paulista”. Era como a roleta russa, se que, no lugar de um revólver com uma só bala, os praticantes apostavam na quantidade de semáforos que o motorista conseguiria “furar” antes de bater. O número de pessoas que perdeu a vida nisso, assim como nos “rachas”, beirava o de uma guerra. Esses privilégios eram muito agravados pelas práticas da ditadura. Carros de militares e aliados, bem como de seus filhos, podiam ter chapas frias.

Rachas pelo Eixão de Brasília e arredores eram comuns até pouco tempo atrás (Foto: reprodução/Metropoles.com.br)

Isso os deixava livres de multas, ou mesmo de acusações por crimes de trânsito. O resultado eram as corridas no Eixão de Brasília, quando os carros envenenados, nacionais e importados, passavam facilmente os 250 km/h impunemente. Correm comentários sem comprovação de que até mesmo Nelson Piquet participara de orgias automobilísticas como essas. Em 1970, um tio meu saiu de Correias, nos arredores de Petrópolis, veio a São Paulo buscar minha mãe e meus irmãos, usando um Opala de seis cilindros (ainda com 3,8 l) e voltou em exatas oito horas de viagem, perfazendo, entre cidade e estrada, 820 km. Passaram pelas longas retas da Via Dutra a mais de 160 km/h sem serem incomodados.

Com um Opala 3.8, um tio meu conseguiu rodar 820 km em cerca de oito horas: a única explicação era viajar pela Via Dutra a 160 km/h (Foto: Chevrolet/divulgação)

O aumento do preço dos combustíveis, a partir de 1976, alterou significativa e permanentemente o resultado da balança comercial do Brasil. A barreira às importações, que antes se limitava às alfandegárias, transforou-se no decreto-lei 1455 de 7 de abril de 1976. Por ele, a importação de veículos foi proibida. Comprar um carro importado voltou, como nos anos 1960, a ser possível aos privilegiados que, por conhecerem gente do corpo diplomático estrangeiro, conseguia adquirir veículos usados de embaixadores e seus secretários. É que eles continuavam imunes à tributação. Mesmo essa imunidade ficou restrita ao serviço diplomático, pois o serviço consular passou a ser interpretado como representação comercial estrangeira, perdendo o privilégio. Ver carros novos importados rodando livremente pelas ruas ficou restrito a Brasília.

Como todas as medidas arbitrárias, o mercado brasileiro teve de conviver com bizarrias administrativas que se transformaram em distorções industriais, beirando a insensatez. Aqui vão dois exemplos. O primeiro se refere aos motores Volvo-Penta. Antes de fabricar caminhões no Brasil, a Volvo já tinha uma representação importante para os motores marinizados, como se costumava dizer. Esses motores tinham seus blocos banhados a bronze para resistir à água salgada com que eram refrigerados.

Os Volvo-Penta para embarcações já estavam presentes no Brasil desde antes da linha de motores para caminhões Volvo (Foto: reprodução/PS Audiction)

Pode parecer estranho, mas usava-se água salgada para refrigerar os motores de lanchas, especialmente, as à gasolina. É que, ao contrário dos motores de automóveis, cuja solução refrigerante fica em circuito fechado, no uso náutico, conta-se com suprimento infinito de água fria. Assim, a válvula termostática permanece fechada quase que o tempo todo, o que reduz a quase zero a velocidade da circulação do líquido, mitigando a abrasão.

O modelo mais vendido pela Volvo-Penta no Brasil era o de seis cilindros em linha de 3,8 l. Era alimentado por três carburadores horizontais, com taxa de compressão de 9:1 e atingia os 190 cv SAE a 5.000 rpm. Havia outros modelos, mas o mais vendido era esse, montado numa rabeta hidráulica da mesma marca. As rabetas uniam as vantagens dos motores de popa aos de centro.

Motores de rabeta podem unir o melhor de dois mundos (Foto: Toyama/divulgação)

Os de centro tem a vantagem de manterem o baixo o centro de gravidade, além de o motor ficar dentro do casco, melhorando seu comportamento dinâmico, especialmente em mar encapelado. A desvantagem é que o transporte da embarcação por terra ficar mais difícil, requerendo-se retirarem-se as hélices (erroneamente chamadas de “os hélices” pelos integrantes do meio marítimo). Além disso, elas são fixas, estando muito sujeitas a danos por colisão com obstáculos submersos.

Os motores de popa têm a vantagem de poderem ser retirados com extrema facilidade. Também podem ser levantados para evitar danos às hélices, tarefa que pode ser automatizada por travas acionadas sempre que há colisões com objetos submersos. Como desvantagens, temos o desequilíbrio provocado por ficarem elevados e na popa do barco, prejudicando muito seu equilíbrio.

O motor de popa pode ser facilmente manipulado e até retirado, mas complicam o centro de gravidade do barco (Foto: Yamaha/divulgação)

As rabetas deixam o motor dentro da embarcação e em posição quase tão baixa quanto a dos motores de centro. Ao mesmo tempo, podem ser elevadas, evitando retirarem-se as hélices para transporte por terra. Some-se a isso que elas podem ser hidráulicas, subindo e descendo por um simples comando no painel. Como o sistema se mantém sempre sob pressão, caso haja um acidente, a rabeta se ergue automaticamente, protegendo as partes móveis.

O decreto-lei proibiu a importação desses motores. Restou ao importador marinizar os motores de 4,1 l do Opala, que eram os de peso e dimensões mais semelhantes feitos no Brasil, posto que, por não haver similares, as rabetas e seus sistemas hidráulicos continuavam a ser importados.

O segundo exemplo de bizarrice aduaneira era a manutenção da importação dos motores de 302 pol³, que vinham do Canadá para equipar os modelos V8 da Ford. A rigor, nada impedia que eles fossem fabricados aqui, haja vista que a Cofap já produzia os motores de 318 pol³ destinados aos carros e caminhões da Chrysler, mais tarde VW. A falta de lógica aprofundava-se porque a própria Ford já produzia os motores de 272 pol³ e 292 pol³ que equiparam os caminhões, além dos Galaxie e LTD até 1973.

Motor Ford 302 também era importado para o Brasil para o uso em embarcações (Foto: reprodução/offshoreonly.com)

Em volume, não resta a menor dúvida de que as importações da Ford pesavam infinitamente mais que as da Volvo-Penta, jogando por terra o argumento da proteção das raras divisas de que o país dispunha. Restava como argumento o fato de barcos à gasolina serem um luxo somente, como se os modelos equipados com os motores V8 da Ford fossem carros populares, ao que se deve somar que usar ciclo Otto em caminhões é um desperdício.

Casos assim só se conseguem num ambiente de arbitrariedade institucionalizada como na ditadura militar. Aí, só resta lembrar Tim Maia em seu desvario e parodiá-lo cantando: “Da lancha ao quintal, não á nada igual!”.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.