Pessimismo x Utilidade: tecnologia é a saída

Será que esse título faz algum sentido? O que tem pessimismo a ver com utilidade? Para entender isso, temos que visitar a evolução do pensamento econômico. Entre o fim do século XVII até a primeira metade do XIX, não se via a economia como uma ciência que pudesse mudar as coisas, muito menos, aproximar as classes sociais. Pessoas morrerem de fome e assim se limitar a população na face da Terra era tido como condição da natureza.

Para David Ricardo, economista e político britânico, na medida em que a população crescia, terras menos férteis eram incorporadas à produção, levando ao seu declínio, até que a fome reduzisse o número de habitantes e tudo voltasse ao patamar anterior. Para Thomas Malthus, também economista e matemático britânico, a fome limitaria o crescimento vegetativo porque as pessoas se reproduzem em progressão geométrica, enquanto a incorporação de terras e o aumento da produção de alimentos ocorre em progressão aritmética.

Teoria da utilidade: ter um carro é extremamente útil por facilitar o transporte. Já ter 1.000 deles torna-se quase que um estorvo para uma só pessoa, por exemplo (Foto: reprodução/cobli.co)

Mais ou menos cem anos depois, já com a indústria implantada na Europa e nos Estados Unidos, os economistas apresentaram a teoria da utilidade, partindo do princípio de que os itens vão deixando de serem úteis na medida em que sua disponibilidade cresça, até que se tornem um estorvo. Um copo d’água no deserto pode valer a vida de uma pessoa, ao passo que uma enchente pode ser a sua morte. O raciocínio, apesar de mais sofisticado, não diferia muito do que diziam Ricardo e Malthus, posto que a utilidade da terra como meio de produção decai com a perda de fertilidade, puxando para baixo a produtividade.

Foi a tecnologia que contradisse as previsões pessimistas e tornou melhor a vida material das pessoas. Na agricultura, primeiro vieram as máquinas para ajudar a ampliar a área plantada; depois, veio o melhoramento genético e a adubação química no que se chamou de Revolução Verde; mais tarde, chegaram os novos sistemas administrativos, tornando a agricultura uma verdadeira indústria no campo; finalmente, a revolução da informação que acaba com desperdícios significativos.

Novos sistemas administrativos fizeram da agricultura uma indústria no campo (Foto: reprodução/Simova)

Na indústria, não foi diferente, começando pelas máquinas, passando pela engenharia de materiais, pela administração científica e pela tecnologia da informação. É claro que as etapas não são tão distintas quanto as descrevemos. As coisas acontecem meio encavaladas e permanentes. O que acontece é que hora o consumo cresce mais rápido que a produção, hora é a produção que cresce mais rápida que o consumo, gerando ciclos econômicos de que nunca estaremos livres, independentemente do sistema econômico adotado.

Aí entra o conceito de desutilidade, que o esforço em adquirir e manter o produto que trouxe utilidade que justificasse seu valor. Se a utilidade for maior que a desutilidade, o consumidor adquire o produto. Caso contrário, o rejeita e até mesmo se livra do que já tem. A Zona Azul, o combustível, o IPVA, o pagamento pela garagem e pelo valet, além da manutenção e do desgaste correspondem à desutilidade de se ter um carro. Podemos chamar isso de “lado escuro da lua”.

Gastos com combustíveis já entram como uma das desutilidades de se ter um carro, juntamente com os custos de manutenção ou IPVA, por exemplo (Foto: VW/divulgação)

É justamente no fundo da fase negativa dos ciclos que ocorrem as grandes inovações, como dizia Schumpeter com sua teoria da disrupção. Nas fases positivas, quando o otimismo supera a racionalidade, a indústria tende a fomentar o consumo, usando a obsolescência programada entre outros artifícios para manter as vendas.

A sucessão de modelos dos anos 1960, a ferrugem dos anos 1970 poderiam ser consideradas como obsolescência programada. A adoção dos itens de segurança, a obrigação por galvanizar as chapas, evitando a ferrugem, e as restrições às emissões, bem como o preço dos combustíveis impuseram o fim da obsolescência programada.

Níveis avançados de segurança, emissão de gases poluentes reduzida…melhorias que impuseram o fim da obsolência programada (Foto: Hyundai/divulgação)

Só que a desutilidade continuou aumentando a ponto de a compra do carro novo restringir o consumo de outros bens como TV por assinatura e computadores. Com o advento da internet, a coisa só piorou. A solução estava na tecnologia, tanto no quesito do desempenho dos automóveis, quando nos processos produtivos.

Quando se fala em processo produtivo, logo vem à cabeça o uso de robôs na linha de produção, reduzindo os custos com mão de obra e adotando métodos que seriam perigosos demais, insalubres demais para serem desempenhados pelos humanos. Mas não é só isso. Todos os passos da cadeia produtiva passaram por alterações inimagináveis.

Talvez a metalurgia do pó tenha sido a mais significativa. Ela permitiu moldar peças com formas complexas demais para serem fundidas e usinadas, além de eliminar cavacos e permitir especificar propriedades muito mais precisas. As tolerâncias reduziram-se de décimos para milésimos de milímetros. O resultado de tanto investimento na busca da leveza e potência elevou o torque específico de 7 mkgf/l para mais de 10 mkgf/l para motores carregados pela pressão atmosférica e ultrapassando os 20 mkgf/l quando sobrealimentados.

Motores modernos já superam os 20 mkgf de torque para cada litro de capacidade cúbica (Foto: Stellantis/divulgação)

Resumindo, os motores ficaram críticos demais para perder massa de componentes nas restaurações pesadas como as retíficas. Isso seria obsolescência programada? Provavelmente não. Tudo leva a crer que a tecnologia empregada não permita mais, por exemplo, reduzir-se o diâmetro dos moentes de um virabrequim, ou aplicar sobremedida nas camisas. Mais que isso, os processos produtivos tornaram-se tão precisos e críticos que não se conseguem reproduzir na imensa maioria das retíficas.

Não será por outro motivo que os motores atuais são cercados por inúmeros sistemas de proteção contra superaquecimento, esforço excessivo, falta de pressão de óleo, baixo nível da solução refrigerante entre outros. Isso aliado à precisão com que os motores são feitos permitem crer que a durabilidade compense largamente a desutilidade da manutenção. Estivéssemos no nível tecnológico de há quarenta anos, a indústria de automóveis teria deixado de existir.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade do seu autor, e não necessariamente reflete a opinião do Carros&Garagem.
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.