China, de vilã à tábua de salvação

Desde que se descobriu que o mundo é uma bola, o Homem vem-se debatendo com o incômodo fato de que o mundo é finito. A revolução Industrial não ocorreu na Inglaterra, ocorreu no mundo, e só foi bem-sucedida porque o resto do planeta não era industrializado, dando uma ideia de infinitude aos mercados. Para os britânicos, aqui dentro, estão as fábricas; lá fora, está o mercado. A produção poderia crescer indefinidamente que sempre haveria quem comprasse, mesmo que se tivesse de viajar muito para isso. Eric Hobsbawm pôs isso no papel com enorme clareza em “A Era dos Impérios”, quando ele mostrou que o alastramento da industrialização pelo continente europeu provocou uma corrida por novos mercados, dando continuidade ao crescimento da indústria.

Mercados eram – como ainda são – ganhos em guerras. Mercadorias não são oferecidas, são impingidas à força, se necessário. A guerra do Ópio é um excelente exemplo disso. No século XIX, os ingleses queriam impingir o consumo da droga aos chineses, mantendo para si o monopólio. Para isso, não tiveram escrúpulos em destruir com um canhonaço naval, o milenar e artisticamente fantástico Palácio de Verão do imperador. Segundo Henrique Carlos Lisboa, primeiro embaixador brasileiro na China, em seu livro “A China e os Chinos” de 1889, aquele país representava trinta por cento da economia mundial, mesmo sendo fechado para o resto do mundo.

Lisboa não contava com o conceito de PIB, que só foi criado em 1936 para medir os estragos provocados pela crise de 1929. Sua opinião advinha do volume de transações em toneladas, inclusive, de ópio. De fato, os chineses já eram extremamente organizados e tinham uma noção precisa de registro civil, contando com uma população estimada de quinhentos milhões durante a permanência de Lisboa no país, entre 1880 e 1884. Foi por essa ocasião que se popularizou o termo “Negócio da China”.

Dominar aquele mercado sempre foi o sonho de toda a economia industrializada do mundo. Ocorreu que, quando os Estados Unidos, grandes vencedores da II Guerra, pensaram ter conseguido isso, veio a Revolução Popular e frustrou-lhes os planos. Mesmo com o desastre humanitário causado por Mao em “O Grande Salto para o futuro”, quando aproximadamente trinta milhões de habitantes morreram de fome, o mercado chinês era gigantesco aos olhos do resto do mundo.

Não obstante, tratava-se de um país agrícola, com sessenta por cento de sua população vivendo no campo. A urbanização advinda da Revolução Cultural criou ainda mais miséria, o que só se conseguiu mitigar a partir da industrialização voltada ao mercado interno, mercado este que continuava sendo a menina dos olhos de todo o resto da economia mundial. Vender para a China tornou-se o sonho de todos na exata medida em que o mercado começou a se abrir.

Foi quando o estado chinês descobriu que produzir no país poderia acelerar a transferência de tecnologia, “afinar” a indústria e, sobretudo, sustentar o êxodo rural. Fixou-se o câmbio e o negócio deixou de ser vender para os chineses e passou a ser produzir na China. As reservas cambiais foram-se multiplicando e as indústrias, que ali se instalavam, passaram a ser obrigadas a contar com sócios locais, financiados pelo estado. Daí, para inverter o processo, tornando a china o grande investidor mundial, foi somente um passo.

O bom negócio deixou de ser exportar para a China e se tornou produzir na China (Foto: Toyota/divulgação)

No âmbito automobilístico, sem as amarras dos contratos de longo prazo a que a indústria ocidental estava sujeita, eles puderam criar, fazer experiências, sempre com o Estado por trás, assegurando eventuais grandes falências. Transferir o parque industrial para lá e vender do lado de cá passou a ser o grande negócio da China, enquanto os ideologicamente influenciáveis esperneiam. O fato é que não há país no mundo que não tenha, em maior ou menor grau, em maior ou menor nível de especialização, uma indústria estabelecida, que se vê ameaçada pelo poderio atribuído a um só país que detém vinte por cento da população do planeta.

Os grandes grupos automobilísticos já descobriram que o estado chinês pode ser um segurador para sua continuidade no Ocidente. Transferir a produção para lá não é somente uma questão de minimizar custos, mas sim também desfrutar do subsídio estatal às alterações tecnológicas que vêm por aí, seja na eletrificação, seja na automação dos veículos. Quanto mais os estados ocidentais, dominados pelo conservadorismo que apregoa austeridade fiscal, mais intensivamente a indústria busca espaço onde o financiamento público se fizer presente. Hoje, esse lugar é a China.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.