Banco de couro, por que seu sumiço? (Parte 1)

Matéria originalmente publicada noutro site (leia a original aqui).

Houve um tempo em que os ônibus da Cometa eram estofados com couro. A alegação da empresa era que o material durava mais e era mais leve que o plástico, além de ser poroso, portanto mais fresco que o plástico usado nas demais empresas. Eram tempos em que ônibus raramente tinham ar condicionado e os passageiros estavam impostos ao calor e ao frio, este último, muito mais intenso do que hoje. Carros como o FNM JK, ou Ford LTD ou Willys Itamaraty tinham estofamentos polidos, quase como de cromo alemão, muito lindos. Era o couro para luxo, era plástico para populares.

Interior dos FNM JK, e de outros sedans de luxo, usavam e abusavam do couro legítimo (Foto: reprodução/Quatro Rodas)

Nos anos 1970, o chique eram os bancos de veludo. Eram de veludo mesmo, não um não-tecido felpudo como se passou a empregar depois. Até mesmo o Ford Landau vinha com bancos de tecido com a felpa lavrada a navalha, realmente luxuoso. O plástico continuava massivamente usado em carros populares, até que esse feltro felpudo metido à besta o substituísse e o couro voltasse a representar o luxo.

A Chevrolet foi uma das que comumente usava veludos em seus bancos, enquanto modelos populares apostavam na solução mais em conta do plástico ou vinil (Foto: Marcelo Spatafora/Quatro Rodas)

A população enriqueceu, a produção de automóveis aumentou, a demanda por couro cresceu mais rapidamente do que a oferta mundial de couros. Os carros passaram a ter estofamento parcialmente de couro e parcialmente de courino ou couro ecológico. O courino, também usado em bolsas muito caras como as Louis Vuitton, é feito com a mistura de pó de rebaixamento com uma resina, depois aplicada a um tecido rústico como uma lona. A aparência é muito boa, quase igual ao couro legítimo mas esquenta mais, resfria mais e dura menos. Já tomei táxis que tinham o tecido de base aparecendo, de tão atacado o revestimento tinha sido pelo suor humano, além do sol, é claro.

A Ferrari foi a primeira a usar esse material nas laterais e traseira dos bancos. Tatilmente, quase não se nota a diferença, só ao dobrar. Ocorre que vivemos no maior exportador de carne bovina. Abatemos, oficialmente, trinta e cinco e, extraoficialmente, cinquenta milhões de cabeças ao ano. Se cada couro tiver 5 m² (fica entre e 4 m² e 6 m²), teremos um total de 250 km², algo como a área do município de Santos. Mas há ainda um abate anual de trinta e três milhões de porcos que, a 2 m² de área, forneceriam 66 km². É muito couro, só que, por vários motivos, dos quais elencarei alguns aqui, nem um terço disso está no mercado.

Acontece que somos nós que mais abatemos gado no mundo. Para onde vão seus couros? (Foto: Wagner Abrahão Jr./JR Studio)

No Brasil, o couro de porco não vai para o curtume porque o comemos como toucinho. Curiosamente, apesar de sermos o terceiro maior produtor de suínos do mundo, importamos couro de porco. Problema mais grave, no entanto, é que, aqui, o pecuarista não recebe nada além da carcaça, assim, não tem interesse em cuidar da pele de seus animais, hora marcando o gado em lugar nobre, hora porque não procura evitar os buracos deixados pelos bernes ao saírem.

O maior problema, porém, é tributário. Para poder estocar as peles, seria preciso fazer uma planta adjacente ao matadouro. Nela seriam retirados os restos de ossos, tendões e gordura, aplicando-se o tanino para preparar o que o mercado chama de wet blue. Aos olhos do fisco, trata-se de produto processado e paga ICMS. Ora, como o boi é isento de ICMS dentro do estado, o matadouro tem muito poucos créditos e o imposto pesa muito. Por causa disso, muitos frigoríficos enterram as peles, diminuindo a oferta e aumentando o preço.

Depois de certo processo de tratamento, o couro chamado wet blue precisa ser armazenado. Esse processo no couro já requer pagamento de ICMS (Foto: Adriano Carvalho/Curtume Cobrasil)

Finalmente, o Brasil tem o segundo maior mercado de pet do mundo e os petiscos de ossinhos para cães têm um valor agregado que o frigorífico não consegue ao vender o couro para o curtume. Mesmo partes nobres do couro, como o grupon, acabam virando os tais ossinhos. Basta lavar, branquear com água oxigenada e secar em estufa do tipo galeria, embalar e está pronto para nossos cães mastigarem. Em outras palavras, o couro de boi acaba no mesmo lugar que o toucinho.

A exportação de couro condicionada, como foi à concessão de empréstimos durante a crise dos anos 1986, foi alvo de tese defendida no Itamaraty em 2014. Esse comércio só fez crescer desde então, sempre condicionada a exportação de outros itens, chegando a US$420 milhões em 2017, deixando-nos sem matéria-prima para processamento local.

Uma das ideias para se resolver esse problema seria o tratamento desse couro feito já pelos pecuaristas, que receberiam o material dos abatedouros (Foto: reprodução/Atacado do Couro Gaúcho)

Em 2006, orientei um trabalho que propunha duas soluções para a falta de couros, para a qual concorre a exportação. A primeira hipótese seria que os pecuaristas recebessem o couro de volta e montassem uma cooperativa adjacente ao matadouro, fornecendo o wet blue para os curtumes. Sendo uma cooperativa de produtores rurais e o resultado um produto minimamente processado, haveria uma enorme chance de conseguir a isenção para o couro desse tipo. Aí, os pecuaristas teriam interesse em preservar o material, deixando de usar arame farpado nas cercas, impedindo a infestação por bernes e marcando em partes menos nobres. Isso não vinga por dois motivos: a extrema resistência do pecuarista ao cooperativismo e o interesse dos frigoríficos em não deixá-los organizarem-se passando os criadores a controlar preços.

A segunda possibilidade seria que os matadouros passassem a ter curtumes próprios, processando o couro até o acabamento no local. Isso, de longe, compensaria a questão tributária e ensejaria o aproveitamento de créditos hoje não aproveitados como o de eletricidade, telefonia e até de combustível… A ideia esbarra na escala das máquinas de beneficiamento de couro, geralmente importadas da Itália. Elas são adequadas para aproximadamente dez mil peles por dia, enquanto os abatedouros raramente passam das mil quinhentas cabeças por dia.

Outra proposta seria que cada matadouro tivesse seu próprio curtume, preparando o couro sem a intervenção de terceiros (Foto: Curtume Minuano/divulgação)

Ao meu ver, um tratamento tributário adequado, com alíquota progressiva, ajudaria muito a aumentar a oferta de couros. Seria também necessário que o Confaz (Conselho de Política Fazendária) revogasse a cobrança no destino para os produtos agrícolas minimamente processados, tal que os estados agrícolas ficasse do lado dos produtores. Provavelmente, a oferta de couros seria maior e poderiam voltar a estofar nossos carros com um produto que não esquenta demais, não esfria demais, é durável e lindo.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.