Os hermanos, os automóveis, o Mercosul e a canoa furada
A proximidade das eleições na Argentina traz uma série de preocupações graças às promessas de campanha de Javier Milei. Entre outras afirmações, que podem não passar de bravatas, há o rompimento de relações com o Brasil, pondo em risco a continuidade do Mercosul. Aliás, no governo brasileiro anterior, houve a mesma ameaça, que não foi para a frente pelo simples fato de que a balança pende para o nosso lado. Os exportadores não ficariam nada contentes em entregar o mercado vizinho para a China, posto que não existe vácuo no comércio internacional, nem mesmo intencionalmente via embargo.
Em uma matéria publicada noutro espaço por ocasião da posse de Jair Bolsonaro, esta coluna mostrou que a indústria de automóveis na Argentina não se sustentaria sem o Mercosul. As condições não mudaram de lá para cá. É possível dizer que até pioraram. A dependência da indústria argentina relativa ao mercado brasileiro cresceu nos últimos quatro anos, principalmente se considerarmos a migração da Ford para lá.
Não se pode deixar de considerar que quase três anos de pandemia alteraram fortemente o nível de consumo em todo o Mercosul, mas as apostas da indústria de automóveis têm prazo mais longo. Tudo indica que o Brasil está vendo seu parque industrial sair das mãos de americanos e europeus, indo na direção da propriedade de grandes produtores do Extremo Oriente, à exceção da Toyota, que está no país desde 1959 e produzindo desde 1961.
Fábricas como a da Ford em Camaçari e a da Mercedes em Iracemápolis passaram às mãos da BYD e GWM, respectivamente, juntando-se ao consórcio CAOA-Chery, fixando a presença chinesa no nosso parque industrial. Também há indícios de que o Brasil seja a cabeça de ponte para a produção de carros elétricos na América Latina, especialmente por capitanear o Mercosul, de que detém dois terços do PIB em paridade do poder de compra. Há ainda um fator pouco difundido: a preferência dos argentinos pelas pick-ups de médio e grande porte.
Construtivamente, as pick-ups com carroceria sobre chassis são muito menos complexas para produzir. Elas requerem muito menos ferramental do que o monobloco como solução, passando ver que os chassis do tipo escada derivam de perfis. Perfis usam a extrusão, que é um processo contínuo, muito parecido com o de fabricar macarrão ou ração para cachorros, guardadas as devidas proporções.
Trata-se de pressionar o aço em alta temperatura através de orifícios denominados tecnicamente de insert, que podem ter vários formatos, mais ou menos como os buracos por onde sai o macarrão, que pode ser espaguete ou talharim. Em ouros termos, se a indústria quiser um perfil novo, basta investir numa só ferramenta, o insert, encomendando o perfil, sob especificação para o aço. Essas barras podem vir cortados na medida desejada, bastando soldar para transformar em chassis.
As plataformas para carros monoblocos requerem, mesmo que modulares, projeto próprio, pois baseiam-se em chapas com dobradura e solda muito mais elaborada, seja no planejamento, seja na execução. Quando se usam chassis, ao contrário, toda a montagem é feita sobre ele, incluindo o motor, a transmissão, a suspensão, até os freios e o material rodante. Basta adicionar a carroceria, que pode ir de um Toyota Hilux SW até um veículo somente cabinado para o cliente pôr a caçamba desejada, transformando-o desde um veículo de manutenção de linhas elétricas até um baú refrigerado.
Há muito que os economistas entenderam que o preço não é determinado pelo custo de produção, mas pela percepção de utilidade, também chamada de satisfação, que o produto pode proporcionar ao consumidor. Assim, dado aos mimos que se podem adicionar às pick-ups, o preço vai à estratosfera, atribuindo uma margem que jamais será obtida por um carro popular. Entre os profissionais de contabilidade de custos, costuma-se dizer que uma pick-up de luxo equivale, em margem, a vinte unidades de baixo preço.
Assim, considerando-se a eterna avidez por reservas de Los Hermanos, é de se esperar que as condições oferecidas pelo Estado para a manutenção de uma indústria exportadora tornem atraente a migração de modelos simplificados e de grande margem, desde que, além da preferência do consumidor local, haja mercado garantido no exterior. Este é o papel do Mercosul. Não é à toa que, exceto a Chevrolet S10 e umas poucas Mitsubishi L200, toda a produção de pick-ups tenha ido para a Argentina, mantendo-se a fabricação de grande parte dos componentes no Brasil.
Assim, a ameaça de Milei ode anular a viabilidade da manutenção da indústria de automóveis, cuja margem reside na fabricação de pick-ups para venda no resto do Mercosul, mais notadamente no Brasil, é uma temeridade. Some-se a isso uma ameaça adicional, a tendência de o consumidor brasileiro em aumentar seu interesse por produtos desse porte e com essa construção, além do apelo que os carros elétricos representam em outras fatias do mercado. Só podemos esperar que os hermanos não embarquem nessa canoa furada.