A Transamazônica, o petróleo da foz e a conservação da floresta (parte II)

Foto de capa: reprodução/amazoniainvisivel.com

Meu pai, entre 1939 e 1975, quando morreu, trabalhou em uma importadora de máquinas de terraplenagem que importava Allis-Chalmers (posteriormente, Fiat-Allis; hoje Fiat). Além de vender, por ser engenheiro civil, para fazer o serviço de pós-venda, ele ia vistoriar obras e levava a mim e meu irmão mais velho com ele. Foi isso, além de um estágio na subsidiária da Camargo Correa, que me mostraram como se constroem estradas e, principalmente, o que as destrói.

As máquinas de terraplanagem da Allis-Chalmers, que meu pai, engenheiro civil, prestava serviços de pós-venda. As visitas às obras me ensinaram muito (Foto: Allis-Chalmers/divulgação)

Existem vídeos mostrando como se pavimenta uma estrada de rodagem, cuja explicação há de ser muito mais didática e precisa do que qualquer uma que eu pudesse dar (aqui, nesse link, confira uma playlist com uma série de vídeos explicando, detalhadamente, todo o processo). A questão aqui é que, sem brita, sem estrada, ou seja, se não houver uma grande fonte de rochas ao longo da estrada a ser construída, o custo da obra será diretamente proporcional à distância percorrida pelos caminhões basculantes encarregados de transportar a pedra britada até o local da obra.

Para que se tenha uma ideia da precariedade desse transporte, os caminhões e carretas basculantes a isso dedicados têm a depreciação acelerada de cinco para um ano de uso. Também pudera, durante a carga, chegam a tirar as rodas dianteiras do chão e, no trajeto, passam por dificuldades indescritíveis.

O trabalho dos caminhões basculantes buscando brita é bastante pesado (Foto: Transvale/divulgação)

 

No início dos anos 2000, trabalhei na empresa que se ocupava com a manutenção do Distrito Federal. Além do serviço de tapa-buracos, a empresa possuía uma fábrica de guias e sarjetas feitas de concreto. O trabalho era incrivelmente ruim porque o concreto também depende de brita e, na região, só se encontrava material extremamente calcário, que se desmanchava com o menor atrito. Assim, se a intenção fosse fabricar material de qualidade, era-se obrigado a busca-lo entre 70 km e 100 km na direção de Goiânia.

O processo, apesar do trajeto em rodovias asfaltadas, tornava-se economicamente inviável e quem mora no DF tem que se ver até hoje com a má qualidade do concreto local. Em outras palavras, a qualidade das pedras é fundamental, sendo o basalto e o granito as melhores rochas, ambas de difícil obtenção na Amazônia.

O basalto é um dos minérios bons para a geração de um concreto de qualidade, mas ele é escasso na região amazônica (Foto: Prefeitura de Uberlândia/divulgação)

Exceto poucos e específicos pontos, não há fornecimento de brita ao longo de todo o trajeto da Transamazônica. Como se não bastasse, o regime de chuvas dissolve a terra compactada, que serve de alicerce para a pavimentação. Durante a construção da Manaus-Porto Velho, isso ficou evidente ao impelir os construtores a cobrir com plástico o leito recém compactado, até que, pelo menos, a canada de base asfáltica pudesse ser aplicada para segurar a brita. Isso obrigou o desenvolvimento de uma nova tecnologia construtiva baseada no solo-cimento.

Tratava-se da mistura de cimento ao solo usado para compactação, tal que se conseguisse rigidez suficiente para manter as coisas no lugar. Só que a chuva continuava solapando a base da estrada depois de pronta e o pavimento, quando muito, durava três anos. Somando-se o custo da construção ao de manutenção constante, o valor por km/ano tornava a obra até mais cara do que uma ferrovia. Uma verdadeira loucura.

Mesmo depois de pronta, a rodovia Manaus-Porto Velho sofreu com a movimentação do solo durante o período de chuvas (Foto: reprodução/Record TV)

Os problemas não terminam aí. Há os cursos d’água que, entre córregos, igarapés e rios, contam-se aos milhares. Aterrá-los ou canalizá-los – tema da próxima matéria – além de crime socioambiental, é mais uma fonte de custos para construção e manutenção.

Mas ainda não se responderam às perguntas principais: Transportar o que? De onde para onde? O que torna qualquer projeto viável é a relação custo-benefício. Para viabilizar a pavimentação e a conservação da Transamazônica, seria preciso que o volume de carga condissesse com o investimento. Isso requereria a ocupação do em torno da estrada, como almejavam os militares nos anos 1960 e 1970, abrindo um rasgo de, pelo menos, 15 km para cada lado da estrada, numa devastação tentada e cicatrizada pela própria Natureza.

A pavimentação completa da Transamazônica envolve muito da relação custo X benefício. É um processo bastante complexo (Foto: reprodução/anotabahia.com)

É claro que a presteza no atendimento às populações locais é um benefício imensurável, mas esses serviços podem ser – como já são – prestados por via fluvial e aérea. Isso significa que devemos deixar as coisas como estão? Provavelmente não, dado ao já mencionado escoadouro de tudo o que há de pior na exploração da floresta, o que será discutido mais adiante.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e não necessariamente reflete a opinião do Carros&Garagem.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.