Visita ao acervo da Stuttgart: sem economia, viva o Porsche

Foto de capa: Acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert

Meu xará e amigo, Luiz Alberto Pandini, tem me proporcionado experiências inesquecíveis. No dia 9 de agosto, ele nos levou, meu irmão mais novo e eu, à Stuttgart, revenda Porsche de Marcel Visconde para examinarmos tatilmente os modelos que se encontravam lá. É terceira vez que recebo um presente desses. A primeira foi no Salão de 2018, quando pude examinar o McLaren Senna do estande. Esse exame rendeu uma matéria chamada “Impressões ao não dirigir”, publicada na AutoPapo, de Boris Feldman.

Em 2018, fui conhecer o McLaren Senna, no Salão do Automóvel (Foto: Acevo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Na segunda, fui à representante da marca, quando examinei também o F1 de Fernando Alonso, o carro com que Ayrton ganhou o campeonato em 1991, entre outros modelos da marca. Agora foram os Porsche inacreditáveis, alguns deles em uma sala que, antes de tudo, é um cofre.

Antes de começar o relato, apresento meu irmão quatro anos mais novo, igualmente cego, que trabalhou como mecânico de automóveis por quarenta e dois anos, tendo se aposentado por conta da pandemia. Agora dedica-se a tocar bateria com sua banda de Jazz e Rock. Ele foi o primeiro mecânico cego a obter o título de especialista da ASE (Automobile Services Exclence) no mundo, o que lhe rendeu uma entrevista na Oficina Mecânica, do saudoso Josias Silveira, uma entrevista para o Jô Soares e um especial no Fantástico.

Meu irmão, Pedro, é mecânico e também deficiente visual. Na foto, ele em uma das entrevistas concedidas (Foto: reprodução/SP Uma Cidade Curiosa)

Apesar de não dirigirmos, gasolina corre em nossas veias. Ter a oportunidade de tocar um carro que nunca esteve em uma oficina comum, por mais equipada que fosse, havia de ser algo memorável, como de fato foi. Ao chegar, soltei Gulliver, meu cão-guia que, na primeira oportunidade, demonstrou total desinteresse pelos carros, indo explorar todas as dependências da loja, até que uma funcionária viesse restituí-lo a mim.

Começamos por um 911 GT3 R de corrida (2016). Como ele tinha a rede de segurança instalada, não deu para entrarmos, mas pudemos acessar os bancos pela janela. Ficamos curiosos para saber para que servia um olhal recoberto por vinil que havia no teto daquele carro e que não encontramos em nenhum outro que examinamos na loja. Ninguém por perto sabia e a curiosidade persiste.

Primeiro que tivemos contato foi o 911 GT3 R de 2016. Na foto, eu, meu irmão e Gulliver, meu cão-guia (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Em seguida, passamos a um 911 Carrera (1975). Assim que pus a mão no para-lama dianteiro, antes mesmo de ver o protuberante para-choques, observei tratar-se de destinado ao mercado Norte-Americano. Na foto, dá para perceber que o para-lama não segue a linha do capô, como nos demais modelos da marca. Isso se deve ao uso de sealed-beans (“silibim” no bom português abrasileirado) no lugar dos faróis originais.

Em seguida, partimos para outro 911, mas agora um Carrera 1975 (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

O para-choques protuberante, que mais parece um beiço de camelo, também era obrigatório nos Estados Unidos, advindo das recentemente lançadas leis de segurança veicular. Atrás, ele tem aquelas garras, que não se encontram nos modelos europeus. Nele, pudemos entrar e estudar o painel e comandos. O acabamento, mesmo que primoroso, denota tratar-se de um carro de performance, não para sobrar luxo. Dá vontade de imitar Al Paccino em “Perfume de Mulher”.

Dali, passamos para um 914-6 verde (1971). Esse é um carro muito interessante, além de raro, pois pretendia-se que fosse um Porsche mais barato, daí ser conhecido como “VW Porsche” na Europa. Deve andar muito bem, com seu motor de seis cilindros e comando no cabeçote, mas mantém muito dos VW refrigerados a ar da época, inclusive os pedais presos ao assoalho, claro que sem o desvio para a direita que incomodou muitos motoristas Brasil a fora.

O 914-6 também tinha um exemplar exposto lá, e suas semelhanças com os VW a ar são interessantes (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Mesmo sendo um projeto diferente, lembra muito o próximo veículo da lista. A documentação que li dizia que os modelos vendidos na Europa usavam injeção de combustível, no entanto, o modelo que nos foi apresentado tinha dois carburadores simples e bem grandes, provavelmente, de 48 mm.

O carro, verde de teto preto, tinha dois carburadores de 48 mm, mas, na Europa, havia injeção eletrônica (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

 

Como o Pandini foi acompanhar meu irmão ao banheiro, encontrei sozinho o 356 Carrera Cabriolet GT (1959), que é o único exemplar que resta no mundo. Estar ao lado de algo único no mundo é mais ou menos como estar perto da estátua de David de Michelangelo. É lindo, com seu teto removível preto numa carroceria bege-areia, que me excita a imaginação.

 

Sozinho, enquanto Pandini guiava meu irmão ao banheiro,, enconttei a peça mais especial do acervo: o 356 Carrera Cabriolet GT 1959 (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Nele, eu constatei que, como observou meu irmão, a linha dos Porsche é sempre a mesma até hoje. Deu para perceber pois não seguimos ordem cronológica. Fomos examinando os modelos conforme esbarrávamos nesses. O motor não é original, nem poderia ser depois de tantos anos. É um quatro cilindros com dois carburadores de corpo simples.

Único sobrevivente no mundo com essa configuração da carroceria cabriolet e do ano 1959, esse Porsche me excita a imaginação (Foto: acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

A impressão de parecença de estilo aumentou com o 911 GT2 RS Clubsport (2021). Esse é bem mais baixo que os modelos anteriores e dá um certo trabalho para entrar e sair dele, ao contrário do McLaren, cujas portas abrem como asas de gaivota e invadem o teto, muito mais práticas e confortáveis para um carro tão baixo. Também interessante é observar, em um só ambiente, a evolução das rodas, cada vez maiores e com pneus cada vez mais baixos, bem como a evidenciação dos sistemas de freio como elemento estético de esportividade.

O GT2 RS Clubsport, mais baixo que os demais, requer mais esforço no entra-e-sai (Foto: Acervo Pessoal/Luiz Alberto Melchert)

No meio do caminho, parada para examinar o motor do 911 GT3 de rua (2015) com aspiração natural. Sua construção fez pensar como ainda se teima em pôr dois corpos de borboletas em motores VW modificados para usar injeção de combustível. Se a própria VW não fez isso na Kombi, nem a Porsche num motor de seis cilindros, deve haver um bom motivo. Impressionou o tamanho do corpo. Infelizmente, não vimos um montado, com todos os periféricos, mas foi bem divertido.

 

Quando comecei a escrever no BCWS, em 2016, pediram-me para tirar uma foto ao lado de um supercarro. Já conhecia algumas pessoas que tinham um, mas não calhou fazermos a tal foto. Poderia ter aproveitado a ida à Stuttgart para fazer isso. Foi outra oportunidade perdida. Apesar de termos estado ao lado de modelos com tecnologia mais recente e avançada, esse é um carro de que gosto muito.

Trata-se do Carrera GT (2006). Cogitei ser o mesmo motor mais tarde usado na Audi RS6, posto que, em 2011, a Lamborghini, que fornecia os motores para aquela SW, pertencia ao mesmo grupo. Pesquisei e estava enganado. O V10 do Carrera GT tem outra origem e a aspiração é natural, além de o volume ser maior.

No Carrera GT 2006, com seu motor V10, temos uma experiência de um a cada um milhão, pelo menos no Brasil (Foto: Acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Para sair de dentro dele, tive até de dar um impulso com a nuca no batente superior da porta, ao mesmo tempo em que jogava o corpo para fora. Como tenho 1,75 m de altura, fiquei imaginando a manobra para quem tem 1,90 m ou até mais. Essa é uma experiência restrita a uma pessoa por milhão, pelo menos no Brasil. Tudo nesse carro é incrível, inclusive seu aerofólio traseiro que se levanta a 110 km/h, se é que alguém tem coragem de o pôr numa estrada comum. Fez-me lembrar dos domingos de sol na Rodovia Carvalho Pinto, por onde os proprietários de supercarros costumam passear.

O maior contraste foi deixar os carros esportivos para entrar no Taycan Turbo (2022). Aí tivemos o Alexandre Payossin, especialista em produto na Porsche, como cicerone. O carro é lindo e, quando me descreveram a cor, azul gelo, logo imaginei os Icebergs refletindo a cor do mar. Como adoro carros azuis, pois são mais fáceis para eu imaginar – não me perguntem por que – adorei o que estava em exposição.

O Taycan lá exposto era de um, como me descreveram, azul gelo, o que me fez gostar bastante do carro (Foto: Porsche/divulgação)

Algumas coisas me preocuparam naquele carro, pois foi feito para a rua e não para as pistas, como a maioria dos demais que vimos. Ele é realmente baixo e com uma distância considerável entre eixos. O risco de engastalhar em alguma lombada é enorme, mesmo com a suspensão ajustável que possui. Também, o teto, para quem vai no banco de trás é baixo a ponto de tocar o topo dos encostos de cabeça. Isso, aliado à cintura alta e os bancos dianteiros, dá uma sensação algo claustrofóbico que poderia ser aliviada com um teto-solar, que o carro não oferece.

Apesar de bonito, o Taycan me preocupou em alguns pontos, especialmente no que diz respeito à seu espaço traseiro e altura da carroceria. Aqui, eu e Alexandre Payossin (Foto: Acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Os comandos de voz são excelentes e, pela minha prática de lidar com esse recurso, consegui fazer algumas coisas que foram novidade até para o Alexandre, como ajustar a temperatura do ar-condicionado. Finalmente, preocupou-me não haver uma soleira nas portas. Como o carro é baixo, para não danificar a pintura, é preciso um certo planejamento para entrar e sair do carro.

Uma emoção especial foi encontrar um dos três 918 Spyder importados para o Brasil (Foto: Acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Finalmente, tivemos contato com o 918 Spyder (2014). Essa é uma emoção especial porque só foram feitos exatamente 928 deles e três vieram para o Brasil, importados pela própria Stuttgart. Descrevê-lo chega a ser heresia. Existem milhares de vídeos e textos que fazem isso muito melhor que eu. O que impressiona são a tecnologia usada em cada detalhe, desde a grade basculante, o sistema de arrefecimento dos freios e das baterias do sistema híbrido, até a saída dos gases logo atrás do vidro traseiro, maximizando a massa sobre o carro e ajudando o “downforce”.

Destaque para suas saídas de escape elevadas, o que ajuda no downforce e maximiza a massa sobre o carro (Foto: Acervo pessoal/Luiz Alberto Melchert)

Aí, faço uma conta que, certamente, os engenheiros fizeram, porém, não se encontra nos sites que consultei. A 9.000 rpm, com 80% de enchimento dos oito cilindros, são 0,552 m³/s de gases que, num carro normal, seriam injetados entre o chassis e o chão, com um efeito indesejado num GT, mas cujo funcionamento foi muito explorado pela McLaren na F1 do início da década passada.

Meu irmão e eu gostaríamos de expressar a gratidão por uma das tardes mais divertidas que tivemos nos últimos tempos. Alugamos bastante o meu xará, o Alexandre e o Marcel, mas foi uma troca de informações incrível. Só faltou andarmos em todos aqueles carros, o que reconhecemos ser inviável. Fica para aproxima vida.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.