Fórmula 1, sumidouro de tecnologia (parte 2/4)

Sistemas de transmissão

A Fórmula 1 teve seu início em 1950, portanto, estamos no 72º campeonato e, desde sempre, foi preciso pôr potência no chão da forma mais racional possível, com conversão da rotação do motor focada em torque nas curvas e em velocidade nas retas. Para cada circuito, existe um conjunto de relações de marcha, obrigando mecânicos a abrirem a caixa para cada corrida, trocando-lhes as engrenagens, assim como a do diferencial.

Até 1961, quando Cooper passou o motor e a transmissão para trás do piloto, este sentava-se sobre o eixo traseiro e tinha a alavanca de marchas entre suas pernas. A mudança da posição do motor trouxe a tomada de força e o diferencial para a frente da caixa, que passou a ser o último dispositivo do carro. Por duas temporadas, carros com motores dianteiros e traseiros competiram lado a lado, nada imposto por regulamento algum. Se essa é a configuração padrão, é porque as vantagens são evidentes, mesmo que levar a alavanca para o lado do piloto tenha obrigado a alargar o habitáculo, deixando-o assimétrico.

As mudanças em H em caixas de cinco marchas foram unanimidade até 1979. Em 1980, já havia transmissões de seis marchas, porém, não para todos os circuitos, nem para todos os pilotos. Ayrton Senna, em entrevista, disse que, para Mônaco, preferia apenas cinco, visto que num circuito tão travado, o tempo perdido para mudar mais uma marcha não compensava o possível ganho de performance.

A liberdade era total aos engenheiros, prova disso foi a introdução do câmbio sequencial pela Ferrari em 1989. Além de permitir usar a embreagem apenas para tirar o carro da imobilidade, reduzindo o esforço do piloto, as alavancas atrás do volante deixaram o habitáculo mais estreito e simétrico, melhorando a aerodinâmica. A adoção da transmissão sequencial eliminou o limite do número de marchas, dando ainda mais liberdade aos engenheiros. Como dizia Ayrton Senna, antes de a McLaren adotar o sistema, “Não dá para competir com um carro que empurra o tempo todo”. A alavanca só foi abandonada pelas equipes anãs em 1995, dois anos depois de tolhida a liberdade de projeto no quesito transmissão.

A Williams, em 1993, trouxe a transmissão continuamente variada do tipo toroidal, desenvolvida pela Nissan em quarenta anos de esforço, para testes. Ela permitia que a relação de marcha se adequasse a cada ponto do circuito, sempre suavemente, evitando trancos, protegendo o trem de força, reduzindo o desgaste de pneus e, principalmente, consumo de combustível. A transmissão poderia mesmo aprender o circuito, mantendo em memória a melhor relação para cada um de seus pontos. A inovação morreu no nascedouro, com a FIA alegando que, por trabalhar em rotação constante, o ruído do motor ficaria monótono, desagradando os espectadores. Além disso, o piloto deixava até de escolher em qual marcha estava, concentrando-se somente em guiar, o que robotizava as provas.

O chamado câmbio CVT Toroidal, desenvolvido pela Nissan (foto: divulgação/Nissan)

O resultado foi a quase extinção do sistema toroidal, popularizando-se o de polias variáveis e correia metálica para uso em baixos e médios níveis de torque. Em 2001, a mesma FIA considerou padronizar os sistemas de transmissão, tanto em fabricante como em configuração, não sendo apoiada por construtores de marca, como a Mercedes-Benz e a Ferrari, que sempre produziram os próprios câmbios.

Desde 2003, todos os carros têm sete marchas, sempre sob a alegação de redução de custos de desenvolvimento, o que aproxima as equipes menores das maiores, tornando a categoria, teoricamente, mais competitiva, o que é contrariado na prática, haja vista a hegemonia da Mercedes na última década. O fato é que desde 1989 não houve revolução alguma nas transmissões, sendo abortada a única tentativa. Isso parece pasteurizar a Fórmula 1, nivelando as equipes por baixo.

O Traction Avant foi o precursor a utilizar o conceito da transmissão de dupla embreagem, na década de 30. Foto: Divulgação/Citröen

Os câmbios sequenciais nunca foram aplicados nos carros de rua, enquanto os com mudanças em H, usados até 1995, eram extremamente parecidos com os que temos em nossos carros. A única exceção eram mudanças nos trocadores de calor, devido à elevada potência. Os modelos de alta performance disponíveis no mercado podem usar os de dupla embreagem, cujo conceito foi desenvolvido nos anos 1930 para o Citröen Traction Avant, mas só aplicados pela Porsche a partir de 1979. Quando não, esses carros usam a tradicional transmissão epicíclica, que hoje pode ter quantas marchas a engenharia do fabricante decidir. Assim, no que tange à Fórmula 1 versus os carros de rua, no quesito transmissão, os últimos quarenta anos foram marcados pela divergência tecnológica.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.