Tarifa-zero do transporte público e o modelo de mobilidade urbana (Parte III)

Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil

Poucos se lembram de que, quando os anos 1990 terminaram, o Brasil vinha de uma PEC que instituiu as reeleições e uma maxidesvalorização provocada, entre outros motivos, por um ataque especulativo contra a Argentina, um contra o México (Efeito Tequila) e outro contra a Coreia do Sul. Esses ataques foram tema para o genial livro “Armadilha para M’Kamba” de Ivan Sant’Ana que, além de escritor e roteirista, operou as bolsas de Chicago e New York por trinta anos.

Ônibus mais antigos eram frequentemente vistos em linhas periféricas de São Paulo. Aqui, uma foto de 1993 (Foto: arquivo SPTrans)

A crise econômica advinda dos fatos acima, juntamente com a desorganização dos transportes públicos promovida por Maluf e Pitta, tornaram a cidade de São Paulo num verdadeiro caos. Circulavam pela cidade Kombis sem licenciamento e com décadas de uso, ônibus dos anos 1970 e vans das mais diversas origens e estados de conservação, todas pilotadas por motoristas cuja habilitação, quando existia, estava para lá de duvidosa. Eles eram conhecidos como perueiros e até tentaram se organizar. O caos abrangia também os taxis clandestinos, alguns bem fantasiados, outros com apenas um pedaço de cartolina colado ao para-brisas.

Surgia ali a brecha para a expansão do transporte clandestino, em peruas e vans (Foto: reprodução/Folha de São Paulo)

Foi quando o crime organizado passou a intermediar o vale-transporte com os clandestinos, acirrando a concorrência com o serviço oficial. Naquele tempo, o vale era de papel e passou a ser aceito pelos motoristas clandestinos com deságio, enquanto empresas de fachada os negociavam pelo valor de face com as emissoras. Tamanha confusão provocou uma queda significativa na lotação dos ônibus oficiais, que passaram a dar prejuízo por falta de faturamento.

Foi nesse ambiente que Marta Suplicy foi eleita, em novembro de 2000. Urgia tomar uma providência, não sem risco para a prefeita, que, depois de ter lançado o Bilhete Único, passou a transitar com colete à prova de balas. É que o domínio do setor pelo crime organizado causou até mortes em Guarulhos. O Bilhete único valia por duas horas tal que o passageiro poderia ir e voltar pagando somente uma passagem. Ele poderia fazer quantas baldeações quisesse no período sem acréscimo de custo.

A criação do Bilhete Ùnico causou rebuliço no meio dos transportes em SP (Foto: Vinicius Pereira/Folhapress)

Para evitar traumas sociais maiores, os operadores do transporte clandestino foram compelidos a formar cooperativas. O mais importante, porém, foi que o vale-transporte passou a ser integrado bilhete único, eliminando o comércio paralelo do antigo passe de papel, causando verdadeiro furor nos atravessadores.

Ali, os prestadores passavam a receber por km rodado, ao passo que os passageiros eram induzidos a troca de ônibus pelo trajeto (Foto: Léu Britto/Agência Mural)

A evolução do método encontra-se fartamente documentada na Internet. O que interessa aqui é a sua conexão com o método de remuneração aos prestadores de serviço, que voltou a ser por quilômetro rodado. É que a intenção era justamente remodelar as linhas tal que elas se tonassem as mais racionais e capilarizadas possível, induzindo o passageiro a ir trocando de carro durante seu trajeto, exatamente como no governo de Erundina.

Isso induziu as empresas a comprarem mais carros e empregarem mais gente, muitas advindas do antigo transporte clandestino, pois o importante era maximizar a oferta, imitada pelo próprio contrato com a prefeitura. Era perfeito? Não, porque a empresa passava a punir os motoristas que não cumprissem o número mínimo de viagens. Eles passaram a não atender idosos e pessoas com deficiência, cujo embarque e desembarque pudesse causar perda de tempo.

Com o tempo e o número de viagens valendo mais, PCDs e idosos eram muito mais ignorados na hora do embarque, dada a maior demora para seus embarques (Foto: reprodução/Extra Online)

Só que Marta não foi reeleita e, assim que José Serra assumiu a prefeitura, retornou ao pagamento por passageiro, mas não teve poder político para extinguir o bilhete único, já enraizado na população. Ora, como o IPC voltou a imperar na matemática do concessionário, lotar os ônibus voltou a ser lucrativo, tornando desnecessário o acréscimo da frota do regime anterior. A primeira coisa que se fez foi vender os carros mais novos, repassando o financiamento para os mais velhos, o que resultou numa liberação de caixa nunca dantes vista para as concessionárias.

Nos terminais, nasceu o “empréstimo” de cartões. O passageiro comprava a entrada de um portador de cartões e, assim que passasse pela roleta, o devolvia pela janela e o bilhete era repassado a outro usuário. Para a empresa, a fraude não fazia diferença alguma porque a prefeitura remunerava consoante o número de passagens pela roleta. O prejuízo era todo dos cofres públicos. Isso se resolveu com uma inteligência inclusa no cartão, que passou a não poder ser autenticado mais de uma vez na mesma linha, na mesma direção. Assim, seria possível somente autenticar na ida e na volta, mas não duas ou mais vezes na ida, ou duas vezes na volta.

Hoje há um enorme conflito entre o Bilhete Único e a remuneração por passageiros, coisa que só a tarifa-zero poderia resolver (Foto: Prefeitura de São Paulo/divulgação)

Ocorre que o convívio do bilhete único com a remuneração por passageiro é matematicamente antagônico, pois parte de duas lógicas conflitantes. De um lado estão a prefeitura e a população desejando maximizar a capilaridade e racionalizar os trajetos; de outro, estão as concessionárias querendo maximizar o índice de passageiros por quilômetro. Só existe uma solução para mitigar o antagonismo num modelo de transporte coletivo privatizado: a tarifa-zero, como se verá no próximo capítulo.

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.