Aquisições na indústria de automóveis, como será? (3/3)

Passividade do consumidor.

 

Até agora vimos que, numa mega transação (e compra e venda de produtoras de automóveis é sempre uma delas), não entra moeda sonante e que tudo isso ocorre por troca de ações, cuja proporção é determinada a partir de um processo de avaliação de ativos tangíveis (fábricas, máquinas e equipamentos, produtos em elaboração, estoques, entre outros), e intangíveis (poder da marca, patentes, contratos e tudo aquilo que vale, mas em que não se pode pôr fisicamente as mãos).

Esse processo, também conhecido por “Valuation”, faz medições individuais e projeções do que seria a empresa operando em conjunto. E são nessas projeções que se busca uma ideia da possível sinergia. É nesse ponto em que se obtêm os maiores acertos, como foi o caso da Hyundai e Kia, ou comentem-se os maiores erros de avaliação, como os casos da Autolatina e junção da Daimler com a Chrysler. Há casos em que os desacertos são financeiros mesmo, como ocorreu durante o noivado entre a GM e a Fiat no início dos anos 2000.

A Autolatina, união entre VW e Ford que durou entre 1987 e 1996 (Foto: divulgação/AutoLatina)

Aí entra um novo ponto e bastante complexo. Por tratar-se de empresas cujo faturamento é maior que o PIB de muitos países, existe um mercado de dívida, muito parecido com o operado por governos quando lançam papéis para captação de recursos. Esse mercado é regido pelas mesmas regras aplicadas às bolsas de valores do mundo todo. O valor desses papéis, que passam constantemente de mão em mão, é função da expectativa da empresa em honrá-los. É de se esperar que eles sejam homogeneizados, seja pelo lançamento de novos que substituam os em curso, seja pela assunção da dívida mobiliária pela empresa adquirente. Estabelecer proporções é, portanto, um exercício de engenharia econômica em altíssimo nível.

Ultrapassada a fase técnica, parte-se para as questões políticas, pois essas transações alteram significativamente as estruturas de mercado, muitas vezes, provocando uma concentração que pode incomodar governos e institutos de defesa do consumidor. Aqui no Brasil é Conselho Administrativo de Defesa Econômica e, nos Estados Unidos, Federal Trade Commission. Por serem empresas multinacionais, talvez seja este o passo mais complexo de um processo de fusão ou aquisição no mercado de automóveis.

Um exemplo dessa complexidade foi a demora entre lançar-se a ideia da Stellantis e a concretização do negócio, com as devidas autorizações. A própria manutenção de marcas e identidades faz parte das manobras para driblar regras governamentais. É que se envolvem países diferentes, com legislações díspares e comportamentos mercadológicos cheio de particularidades. Tomando a Stellantis como exemplo, para nós, sul-americanos, basta imaginar que a Peugeot é uma marca significativamente mais forte na Argentina do que no Brasil, daí ser esperada receptividade diferente à fusão entre os dois países.

O terceiro e último passo é obter o aval dos órgãos que protegem os acionistas. No Brasil é a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e, nos Estados Unidos, é a SEC (Securities and Exchange Comission). A rigor, uma transação dessa monta jamais deveria passar ao largo dos acionistas, especialmente dos detentores como os fundos de pensão pertencentes aos sindicatos, pois disso depende o rendimento de milhões de aposentados ao redor do mundo.

É justamente neste terceiro passo que o Brasil, apesar do tamanho de seu mercado, torna-se carona nos destinos de empresas que, de uma forma ou de outra, gozaram de benefícios fiscais e financiamento muitas vezes subsidiado. Nem no caminho a seguir estando apto a dar palpites, esperando, quando muito, uma indenização por contratos não cumpridos ou não assumidos pela empresa resultante. A questão é que, desde a lei 6.404/1975, as empresas passaram a poder transformarem-se de S. A. em limitadas e, durante os anos 1980, todos fabricantes de automóveis fecharam seu capital.

Por serem companhias limitadas, não precisam seguir as regras de conformidade impostas pela CVM, porém, atendendo as imposições do país de origem, ou dos países em que negociem em bolsa, seja no mercado de ações, seja no mercado de dívida. Houve algumas tentativas mal sucedidas de reverter esse erro histórico, como com a lei 11.638/2007, que propunha que empresas limitadas, a partir de um dado valor de patrimônio ou outro de faturamento, fossem obrigadas a se comportar como sociedades anônimas. A nós, pobres mortais, resta ver nossos veículos, de uma hora para outra, passarem a pertencer à linha de uma empresa que antes rejeitávamos, ou não.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.