Rodas para que as quero

Os movimentos circulares estão no nosso organismo. Às vezes, não temos a consciência de que todas as nossas articulações e todos os nossos movimentos dependem do giro. Não se tem notícia de como se teve a primeira ideia de transpor nosso meio natural de movimento para uma ferramenta e pôr algo a girar. As fundas de caça vêm de tempos imemoriais. Daí a pôr troncos à guisa de roletes para movimentar pesos muitas vezes maiores do que o de um ser humano foi somente um passo. Do rolete à roda foi somente uma questão de evolução. Mesmo quando tentamos nos livrar delas, temos de recorrer a algo que gira: assim, de um círculo concreto a um imaginário, continuamos dependendo da roda.

Sim, existem alguns tipos de motores que não giram, como são o estatojato, mas não o pulsojato. Mais recentemente, também o ramjato, bem como alguns tipos de motores de foguetes. Seu uso, porém, mesmo que indiretamente, depende fortemente das rodas.

O ramjato, por exemplo, só funciona acima de 500 km/h, de sorte que é preciso lançar mão de um motor com turbina para a aeronave alcançar velocidade capaz de pô-lo a funcionar. Há quem diga que a eletrônica substitui a roda e, em muitos casos, isso é verdade com o auxílio do magnetismo, como nos motores lineares usados nos Maglev. Mesmo secundariamente, esses trens dependem das rodas, seja em seus compressores de ar, seja nas simples articulações das portas.

Os trens tipo Maglev apostam na eletrônica e sustentação através do magnetismo (Foto: reprodução/CNN)

Desde há muito, porém, as rodas são vistas como estorvo quando se fala em logística. No metrô, por exemplo, se metálicas, são duráveis, mas ruidosas; se a opção for pelos pneus, ganha-se em silencia e perde-se em custo de manutenção. Nos aviões, assim que se alça voo, as rodas passam imediatamente a ser um estorvo devido ao seu arrasto aerodinâmico. Este é tão significativo que compensa carregar o peso do sistema de retração, que as guarda no interior da fuselagem da aeronave.

Essenciais num pouso, as rodas dos aviões são um estovo durante o voo pelo atrito com o ar (Foto: reprodução/Wikipedia)

O primeiro sistema bem sucedido para eliminarem-se as rodas no transporte de superfície foi o hovercraft, inventado em 1955 pelo engenheiro inglês Christopher Cockerell. Ele tinha duas hélices voltadas para o chão para criar um colchão em que o veículo se apoiava. Para aumentar sua estabilidade, adotou-se uma saia cuja função era equalizar a pressão sob toda a área do veículo, sem o que era quase impossível pilotá-lo. Isso permitia que ele trafegasse igualmente sobre a terra e a água, constituindo-se numa ferramenta poderosíssima para uso militar, como na I guerra do Golfo em 1991.

Primeiro hovercraft foi criação de um inglês, e a máquina podia andar sobre a terra ou água (Foto: reprodução/Getty Images)

No uso civil, entre 1966 e a inauguração do Eurotúnel (1994), um hovercraft com cinco turboeixos transportou milhões de pessoas entre Dover na Inglaterra e Calais na França. A maior fabricante mundial de hovercrafts é a inglesa Griffon Hoverwork, com representação no Brasil, que fornece para as Forças Armadas da Colômbia, guarda marítima dos Estados Unidos entre muitos clientes de grande porte. A italiana Hi Tech está aportando US$150 milhões na construção de uma fábrica no Espírito Santo, com produção prevista para iniciar em 2024. Eles já tem um exemplar trabalhando no Aeroporto do Galeão, RJ, para fins de resgate no mar.

Os italianos da Hi Tech pretende erguer sua fábrica no Espírito Santo, e já tem até um exemplar que serve para resgates aquáticos no Aeroporto do Galeão (Foto: divulgação/RioGaleão)

Nos anos 1960, os alunos e professores de engenharia automobilística da FEI construíram o FEI X1, que era um veículo com a mecânica do Renault Gordini. A 20 km/h, sua carroceria já dava sustentação aerodinâmica suficiente para tirar a roda dianteira do chão. Era movido a hélice e pilotado aerodinamicamente para o ângulo de guinada. As experiências brasileiras com o hovercraft não param: nos anos 1970, construíram-se vários para competição, geralmente, usando motores 250S da GM.

Uma importante criação brasileira nesse segmento foi a do FEI X1, desenvovido por professores e alunos da Faculdade de Engenharia Industria (Foto: divulgação/FEI)

Mais recentemente, o Estaleiro LIAA de Manaus construiu dois protótipos destinados ao uso militar e civil com capacidade para até 140 passageiros e uma velocidade de cruzeiro ao redor de 110 km/h. Considera-se que seja o meio ideal de transporte para a Amazônia porque, sendo capaz de trafegar sobre a terra e a água, pode seguir o leito dos rios mesmo durante a estação seca.

As criações experimentais do LIAA são feitas para acomodar diversas pessoas e corre a altas velocidades (Foto: divulgação/LIAA)

Essa, no entanto, não é a única solução em vista. A startup AeroRiver já tem um ecranoplano construído em escala, chamado de Volitan. Ecranoplanos são equipamentos originários da União Soviética, usando o efeito-solo para criar sustentação, sendo pilotados muito mais como um avião do que como um carro ou um barco. Ele deverá ter 18 m de envergadura, podendo trafegar a 150 km/h sobre os rios amazônicos nas mesmas condições que o hovercraft, porém, para somente doze passageiros.

Ecranoplanos como o AeroRiver Volitan seria ideal para percorrer os rios amazônicos, mas sua grande envergadura poderia causar problemas com as árvores e vegetações de lá (Foto: divulgação/AeroRiver)

Nos dois casos acima, o contato das rodas com o solo pode ser evitado, mas não sua presença, seja na propulsão, seja nas manobras passivas, quando se depende de um trator, como é o caso dos pushback dos aeroportos. Resumindo, até quando as queremos evitar, as rodas continuam presentes como símbolo da engenhosidade humana.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.