Preparando os Fusca Speed 1600 para corridas

Deve ser saudosismo de minha parte, mas tenho lembrado da preparação dos carros de corrida que já competi. Falei do VW Passat que preparei e corri em diversas provas. Lembrei-me que, no final dos anos 80, cheguei a competir no campeonato paulista na categoria Speed 1600, formada basicamente por um Fusca com motor 1600 de dupla carburação, semelhante ao do Brasília, suspensões devidamente acertadas em amortecedor, molas de torção e geometria para correr em Interlagos.

Largada das provas Speed 1600 em Interlagos tinham cerca de 60 carros (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Na época, a categoria Speed 1600 estava no seu auge, e chegamos a ter grid de largada com cerca de 60 carros. Um verdadeiro festival do ronco para uma tarde de domingo. Muito legal e divertido! Mas para quem acha que as corridas de Fusca não detinham nenhuma tecnologia de preparação, um grande engano.

O meu carro, um Fusca azul, vermelho e verde com faixas rosas, número 61, que já comprei pronto e até pintado, não era lá “nenhuma Brastemp”: tinha motor a álcool fraco e havia muita coisa no carro para ser feita. O sistema de suspensões tinha apenas amortecedores mais duros e estava devidamente rebaixado para melhorar a aerodinâmica e abaixar o centro de gravidade.

Meu carro, número 61, não era nada espetacular (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Mas, sabia pelos amigos preparadores, que os carros de ponta da categoria eram repletos de segredos e macetes que faziam toda a diferença na performance final.

Motor e câmbio

O motor, pelo regulamento da categoria na época, deveria ser basicamente igual ao original a álcool. A partir desse regulamento básico, em que até o comando de válvulas deveria ser o mesmo do carro de fábrica, os preparadores faziam 1001 mágicas.

Cada carro, principalmente os de equipes de ponta, tinha seus macetes e segredos (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Na carburação, composta por dois Solex 34, com difusor limitado a 24 mm, do original mantinha apenas a aparência: todo ele era refeito por dentro, desde a passagem do combustível até o diâmetro do difusor, que os preparadores usinavam até chegar em 28 ou até 30 mm de diâmetro. Tudo estava no regulamento, que dizia que a preparação dos carburadores era livre.

Os coletores de admissão, em ferro fundido, faziam-se casar com os furos do cabeçote. Tudo para que não houvesse turbulência ou perda do fluxo de admissão. O platinado do sistema de ignição era dispensado, podendo ser trocado pela eletrônica do VW Gol 1.6 a álcool. Claro que a curva de avanço era feita por cada preparador, e esse era um dos segredos não revelados. Pistões de cabeça plana eram semelhantes aos originais, mas aí outra grande sacada: a taxa de compressão original, de 10:1, poderia ser livremente retrabalhada.

Para ajudar, os carros eram bem aliviados: pesavam não muito mais que 700 kg (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Assim vinham os exageros e macetes de cada preparação. Alguns profissionais que regulavam os carros de ponta falavam em 15:1 de taxa de compressão, enquanto outros, mais do que exagerados, cravavam 16:1. Na época, eu brincava que, se bobeasse, esses motores poderiam trabalhar no ciclo Diesel, de tão comprimidos que eram. O fato é que a saída de curva desses propulsores com taxa tão alta era como um tiro, tamanha a rapidez com que o motor impulsionava o Fusquinha, aliviado de peso, que não tinha mais que 700 kg.

Calculo que um motor 1600 de ponta desses, bem preparado, entregava ao redor dos 80 ou 90 cv de potência, mas com torque que deveria beirar os 15 mkgf. Valores impressionantes para um propulsor 1.6 tão antigo, carburado e arrefecido a ar.

A categoria Speed 1600 sempre reuniu muitos competidores (Foto: reprodução/issuu.com)

Na transmissão, bem robusta e que raramente quebrava, o que se fazia era o acerto das folgas que, mesmo que tornassem a caixa barulhenta, deixavam-na mais livre, consumindo menos potência por atrito. E, para completar esse trabalho do câmbio, sua lubrificação era feita com óleo de motor, até mesmo utilizando o Mobil 1 Racing 20w50, totalmente sintético, que os preparadores diziam parecer água. Era a grande novidade da época. Não era ideal, pois o tal lubrificante não tinha aditivação EP (Extrema Pressão), específica dos óleos de engrenagens.

Mas, numa corrida de 10 voltas, dava conta do recado, e diminuía a perda de potência pelo atrito da transmissão. Ou seja, sobrava mais força nas rodas. Se esse powertrain do Fusca não era dos mais modernos, pelo menos era muito confiável, já que os carros raramente paravam por quebra de motor e, muito menos, câmbio. Não eram rápidos nas retas, já que tinham potência limitada, mas, no miolo do circuito eram incrivelmente rápidos, seja em saídas de curva ou retomadas.

A concepção do Fusca sempre permitiu diversas mudanças e personalizações (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Suspensões

Como todos sabemos, na plataforma dos Fusca, o sistema de suspensões não tinha molas helicoidais, mas sim molas através de barras de torção. E essa base permite muitos ajustes na barra, nos amortecedores, ou até mesmo posicionamento do conjunto dianteiro. Atrás não se podia fazer muito, apenas ajustes na barra de torção para a altura desejada, sem que houvesse muito exagero da cambagem da roda traseira, o que faz perder muito em arrasto e aderência, mas sim por diminuir o centro de gravidade traseiro, onde estavam motor e câmbio.

Na dianteira, a suspensão do Fusca saía completamente, e era fixada no veículo por um componente batizado de cabeçote, onde quatro parafusos garantiam a fixação do conjunto. Colocavam-se ali amortecedores mais firmes e feixes de molas mais duros, normalmente da perua Kombi. Para rebaixá-lo, utilizávamos um sistema batizado de castanhas ou catracas, que fazia girar o ponto de apoio das molas. O carro podia ficar mais baixo ou mais alto, de acordo com as necessidades.

Nos carros só rebaixados, como o meu, havia grande tendência de sair de frente nas curvas de baixa e média velocidade (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Até aí, nenhum segredo, até porque isso tudo era feito inclusive nos Fusca rebaixados de rua. A sacada ficava por conta da fixação da suspensão dianteira no tal cabeçote, ligado diretamente ao chassi: os preparadores colocavam calços mais grossos na parte de baixo e mais finos na parte de cima, o que aumentava consideravelmente o cáster, mudando toda a geometria da suspensão dianteira.

Quando simplesmente se rebaixava o carro, como era o meu Fusca de corrida, nas curvas de baixa e média velocidade, a tendência era sair exageradamente de dianteira: a traseira pregava no chão, empurrando as rodas dianteiras esterçadas sem que o carro fizesse a curva. Assim, o tempo de volta não aparecia. Quando a fixação era devidamente calçada, a geometria alterada fazia com que o conjunto dianteiro flexionasse, permitindo que o carro contornasse as curvas com muito mais facilidade.

Carros de equipes mais endinheiradas tinham muito mais preparação que o meu. Aqui, no canto da foto, o então jovem Ricardo Dílser, hoje gerente de comunicação e assessor técnico da Stellantis, que também seguiu carreira de piloto (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Além disso, com os calços colocados entre a suspensão dianteira e o cabeçote do chassi, aumentava a distância entre-eixos, melhorando significativamente o comportamento dos Fusquinha no miolo do antigo traçado de Interlagos. Os resultados vinham mesmo nas curvas de alta, pois, com maior distância entre os eixos dianteiro e traseiro, o carro ficava valente para contorná-las muito bem. O acerto da barra de torção traseira com os amortecedores mais firmes em conjunto com a dianteira de cáster aumentado e maior entre-eixos, fazia dos VW 1600 um terror até mesmo para carros modernos. Os Fusquinhas eram verdadeiros demônios nas pistas.

No conjunto, motor 1.6 altamente comprimido, baixo atrito do câmbio, e esses macetes de suspensão faziam dos Fuscas carros totalmente renovados. E, claro, toda essa preparação foi fruto de anos e anos de trabalho dos preparadores. Cada um descobria um detalhe ou novidade, e tudo junto fazia dos carros verdadeiras balas. Agora, vocês já imaginaram 50 ou 60 Fusca assim largando juntos numa tarde de domingo? Era coisa de louco, mas muito divertida.

Coisa de louco, mas bem divertida (Foto: acervo pessoal/Douglas Mendonça)

Na verdade, toda essa preparação acima era dos carros de ponta, das equipes com grana. Eu, com meu carro humilde, conseguia largar no meio do pelotão, saía entre a 20ª e 25ª posição. Era normal ter 25 carros na minha frente, e, olhando pelo retrovisor, outros 25 atrás. Disputas acirradas, onde muitos acabavam capotados ou enfiados nos guard-rails, e o bicho pegava mesmo quando chovia. Aí era o verdadeiro “pega pra capar”. Experiências que guardo como lembrança até hoje.

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.