Os meandros da logística e a “uberização” do frete (Parte I)
Em 1972, os cegonheiros fizeram uma greve e a indústria de automóveis ficou com os pátios cheios. Era um tempo em que fazer greves era proibido pelo AI5. Tratou-se de uma greve branca. Os motoristas, até então contratados como empregados, não fizeram piquetes, não alardearam. Eles saíam com a carga e não entregavam no ritmo esperado. Foi então que se teve a ideia de que cada um tivesse seu próprio caminhão.
As transportadoras especializadas, bem como os fabricantes de automóveis, venderam suas frotas para os motoristas, passando a pagar por veículo entregue, derrubando o argumento para a greve. Aos poucos, transportadoras de todos os ramos adotaram a mesma política. Transformaram-se em meros agentes de frete.
As transportadoras tornaram-se especializadas em tipos de caminhões, muito mais do que em tipos de cargas. Havia verdadeiros impérios como a Transdroga, que deixou de transportar somente produtos farmacêuticos para fretar qualquer tipo de produto que exigisse baú. O emissor da carga procurava uma transportadora e solicitava o frete. Os motoristas, por sua vez, depois de entregar uma mercadoria, dirigiam-se às transportadoras para saber se havia carga a transportar.
A transportadora fazia o meio de campo e cobrava do emissor, descontando uma taxa de administração, antes do repasse ao caminhoneiro. O fluxo de negócio criou verdadeiras concentrações de transportadoras, como na Vila Maria em São Paulo. O máximo da modernidade era o motorista, para evitar a viagem até a transportadora, poder ligar de um orelhão.
Algumas transportadoras tinham – e ainda têm – armazéns para suprir duas situações específicas. A primeira é o recebimento de cargas de pessoas físicas, quando se é obrigado a emitir nota de entrada. A segunda refere-se às limitações da legislação de trânsito do município, quando a carga tem que passar de um tipo de veículo a outro para seguir viagem. Essa necessidade ensejou um negócio à parte, os chamados centros de distribuição.
Trata-se de local em que a carga é fracionada. Digamos que uma carreta cheia de pares de tênis saia do fabricante no sul do país em direção a São Paulo. Como esses sapatos precisam chegar a pequenas lojas de varejo, têm que ser rearranjadas das carretas em VUCs (veículos urbanos de carga) para entrar na cidade. A coisa ficou tão sofisticada que o fabricante faz contrato de comodato, que tornam o centro de distribuição em uma filial virtual.
Isso permite que o CD receba uma nota fiscal de simples remessa e emita, em nome da fabricante, as notas de venda para a mercadoria já fracionada. Também as grandes cadeias de lojas e supermercados aderiram à prática dos centros de distribuição. Até mesmo os Correios viram nisso o negócio do futuro, aproveitando sua capilaridade, a ponto de viabilizar importações diretas por pessoas físicas, algo impensável anos atrás.
Não demorou muito para, depois da abertura de mercado, ocorrida nos anos 1990, os CDs começassem a abranger o comércio internacional, fechando contratos com empresas no exterior e cuidando de todos os trâmites burocráticos da importação juntamente com os despachantes. Algumas dessas empresas autodenominaram-se “forwarders”. Outras tornaram-se portos secos, cuja função era desafogar o trânsito nos portos e aeroportos, trazendo para si a responsabilidade pelo recebimento de cargas importadas ou a exportar.
A cadeia sofisticou-se, mas a forma de contratação continuou a mesma. Naturalmente, a comunicação entre caminhoneiros autônomos e os elos da cadeia logística também evoluíram com a melhoria dos meios de comunicação, especialmente, a popularização da internet. O modelo de negócio, porém, permaneceu o mesmo.
De fato, durante quase cinquenta anos, o Brasil não assistiu a nenhuma greve de grande significância. Houve algumas, porém, em estradas específicas e tipos determinados de carga, nada parecido com o que se viu em 2018. Mas isso é uma outra história…