Frota, o lado escuro da lua (2/3)

A frota no campo

Naturalmente, a oficina não é o habitat de uma frota. Ela foi feita para circular, sozinha, como nos fretes e nas entregas, ou em comboio, como nas obras e atividades do campo. Também há casos em que as características se misturam. Um bom exemplo disso é a manutenção das áreas verdes, que se entendem como atividades agrícolas em meio urbano. Quem vive numa cidade com abundância de áreas verdes não imagina que haja todo um trabalho de mecanização por trás.

Esse trabalho exige uma frota cuja operação é tão mais complexa quanto elaborado for o equipamento em uso. Uma frota de caminhões de lixo, por exemplo, corresponde a um patrimônio significativo com operação e manutenção muito cativantes, mas a coleta de lixo está no nosso cotidiano, daí a escolha do tema recair sobre os comboios de cuja existência as pessoas geralmente nem se dão conta.

Imaginemos uma cidade como Brasília, com suas mais de trinta regiões administrativas, que também pode ser encarada como uma fazenda com mais de 500.000 hectares, com centenas de quilômetros de estradas, de forma que a frota pode estar a mais de 40 km da base. Formam-se então comboios que contam com oficinas, borracharias e postos de combustível volantes, tudo feito para que o trabalho não pare, até mesmo com abastecimento em movimento, como ocorre nos grandes plantios de grãos, ou nas grandes colheitas de cana, numa dimensão que não encontra equivalente no resto do mundo. Cabe ao gestor ficar a par do que acontece e antever itens, que vão desde a manutenção rotineira, às quebras mais prováveis, mesmo inevitáveis, dado ao tipo de operação. Aqui vão dois exemplos de uma infinidade que ensejaria um livro.

O caminhão-tanque agrícola, conhecido popularmente como “melosa” (foto: reprodução/Romanelli Notícias)

Máquinas de um comboio não podem ir ao posto, então o posto tem que ir até elas. O posto volante é um caminhão-tanque, abaixo do qual há um gaveteiro com filtros e dois tanques auxiliares, um para óleo lubrificante e outro para fluido hidráulico, visto que as trocas são feitas ali mesmo. Por mais que o conjunto seja lavado, não há como não ficar emplastrado, daí o apelido de “melosa”. Máquinas operatrizes não podem pernoitar com pouco combustível no tanque para evitar que a higroscopia do diesel danifique filtros, tubos e bombas.

Assim, a regra é que a melosa abasteça o tanque de toda máquina de que ela passe perto, precisando ou não. Por causa disso, o itinerário da melosa é crítico. No início da jornada, ela deve ir até o ponto mais distante da operação e vir abastecendo as máquinas na direção da base, onde ela própria será abastecida com mais de 5.000 l, além da reposição dos componentes consumidos para a jornada seguinte.

Para controle de custo, divide-se o combustível entre “no posto” e “no campo”. No primeiro caso, ele entre pelo valor de compra acrescido do frete, se houver; no segundo, adicionam-se todos os custos da melosa, incluindo motorista e ajudante. Dez anos atrás, o diesel no posto custava R$1,90 e, no “no campo”, chegava a R$2,70. Difícil era fazer os peões entenderem que não podiam simplesmente pôr a boca da mangueira no tanque da melosa, pois ela passaria a rodar com um combustível caríssimo e destinado às máquinas motrizes. Se ela ficasse desabastecida, tinha de ir até o posto para encher o tanque e voltar ao serviço.

Outra situação é a quebra inevitável, como acontecia na colheita de algodão no sul do MS, onde chove no período, justificando o abandono da cultura na região. Lá se mantinham eixos motrizes sobressalentes completamente montados desde o diferencial até os pneus, passando por todos os componentes intermediários. As colhedeiras, seja de que cultura for, têm que ser acompanhadas por caminhões, que retiram o produto do campo sem que a colheita seja interrompida. Caso um caminhão carregado atole e tenha a ponta de eixo rompida, o conjunto todo tem de ser substituído no campo para que o dano possa ser reparado num ambiente controlado como a oficina.

Na verdade, esses danos inevitáveis estão diminuindo muito de frequência, graças ao avanço da engenharia de materiais. Mesmo assim acontecem e, quando são imprevistos, troca-se o equipamento por completo para que nada falte. Um bom comboio precisa contar com uma carreta-plataforma, capaz de transportar a maioria dos equipamentos sobressalentes. Não há nada que dê mais desgosto a quem ama as máquinas que ver um trator rodando perto da velocidade máxima no asfalto com fragmentos de preciosa borracha arremessados à volta toda, além de seus sistemas hidráulicos submetidos a esforço totalmente desnecessário.

Foto: reprodução/Simova

O fato é que, entre a alegria de ver o trabalho fluindo e a tristeza pela falta de respeito às máquinas, portanto, ao engenho humano, existem bizarrias que nos fazem rir muito, mas isso é outra história.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.