Fiat 147 GL: o meu Quindim

Quindim é um doce tipicamente brasileiro que tem como ingredientes a gema de ovo, açúcar e coco ralado. Originado no Nordeste, corresponde à receita portuguesa conhecida como Brisa-do-Lis, mas com a utilização de coco ralado em vez da amêndoa da receita original. Preparado geralmente em formas pequenas, assim como as empadinhas, é amarelinho e saboroso.

O quindim…não o carro, mas o doce (Foto: reprodução/internet)

Por mais que eu goste de doces não vim falar deles, mas sim do meu primeiro carro, ao menos oficial. Digo oficial pois em 2004, minha mãe e eu dividíamos um Fiat Uno Mille EP 2 portas 1996 vermelho. Quando ela o comprou, fiquei encarregado de fazer toda a manutenção periódica, com direito a uso para ir à faculdade toda noite e integralmente nos finais de semana. Mas em 2005 meus pais se separaram e ficou difícil o uso compartilhado.

Na frente, o Mille EP 1996 que compartilhava com minha mãe (Foto: Leonardo França/acervo pessoal)

Querendo evitar financiamentos, resolvi que compraria o carro com o dinheiro que eu tinha guardado em poupança. Com R$ 4.000,00 disponíveis (R$ 10.459,03 hoje de acordo com o INPC/IBGE), fora outro montante para revisão inicial, documentação e alguns acessórios, comecei as buscas em agosto de 2005. Olhei muita coisa: VW Variant 1974, VW 1300 1978, VW Passat LS 1984, VW Gol S 1984 (sim, o BX), GM Monza SL/E 1986 e VW Gol CL 1989.

Uma das opções era um Gol CL 1989, mas o carro já tinha sido batido (Foto: VW/divulgação)

A escolha parecia simples, onde quanto mais novo fosse o carro, melhor, mas um VW Gol CL 1989 no padrão de compra estabelecido por mim custava em média R$ 6.500,00 à época, e este em questão estava à venda por R$ 5.000,00. Com o preço abaixo, o “Golzinho” tinha detalhes: a traseira não era lacrada, pois já havia sido batido, além do vidro traseiro, lanternas e para-choques de reposição. Obviamente o carro foi descartado.

O GM Monza atendia a todos os requisitos, mas quando o levei ao mecânico, ele alegou que seu motor apresentava uma leve “rajada”, mesmo afirmando que ainda rodava por mais uns 2 anos… Como gosto de rodar muito, 2 anos para ele poderia ser 6 meses para mim e assim também descartei o “Monzão”. Andei no VW Gol S: carro impecável, 1º dono, branco, lindo. O mesmo mecânico me desaconselhou, pois, movido a etanol, ele alegou ser difícil manter a regulagem dos 2 carburadores de seu motor refrigerado a ar em dia.

O candidato Monza SL/E tinha motor rajando, o que seria um problema futuro (Foto: Chevrolet/divulgação)

No test-drive com o Passat LS, achei o carro estranho. O acelerador tinha um curso muito pequeno, faltava o botão da buzina do volante, e com isso eu não quis levar sequer ao mecânico (hoje eu teria levado, trocado o cabo do acelerador e instalado o botão da buzina). O VW Fusca era bem bonito, amarelo, com interior preto e 100% original, só tinha uma lanterna traseira de reposição e o preço era R$ 3.800,00, mas os pneus estavam ressecados, e não gostei do desempenho, além de achar o carro muito apertado.

O Fusquinha era perfeito, mas não me adaptei ao carro (Foto: VW/divulgação)

A VW Variant era um show à parte, pelo menos em 2005. Carro de único dono até 2003, foi passado para o neto do proprietário original após o seu falecimento, e o neto não economizou investimentos: forros de porta em aço escovado, bancos Recaro, rodas “Orbitais” aro 15 com pneus novos, volante/manoplas/pedaleiras Shutt, além de lanternas traseiras fumê (paralelas) e todas as peças originais que acompanhariam o carro, incluindo os bancos.

Com manual, chave reserva, nota fiscal de compra e as placas amarelas no porta-malas, logo quis levar a perua da VW para dar uma volta. Mesmo com a dupla carburação, o mecânico aprovou, e levei para meu pai ver. É claro que ele tinha bom senso, e reprovou o bólido na hora. Faço um adendo: em 2005, carro antigo ainda não era como hoje. Somente os colecionadores mais apaixonados tinham, mas no geral eram de difícil comércio e com desvalorização acentuada, ainda mais se estivessem customizados.

Só não comprei a Variant pelo veto do meu pai (Foto: VW/divulgação)

Eis que me rendi a possibilidade de encarar um financiamento e comecei a olhar Fiat Mille Smart, VW Gol Mi, GM Corsa e Ford Fiesta, carros ditos seminovos e a suaves prestações. Em um domingo de outubro de 2005, fui à procura de um modelo da nova lista na feira de usados da cidade. Olhei alguns nesta feira, incluindo um GM Corsa Super 1999 2 portas básico com 47 mil km, marcando inclusive para levar o Chevrolet para a oficina na segunda de manhã.

Porém, ao sair da feirinha, deparei logo na entrada com um conservadíssimo Fiat 147 GL amarelo, 1980/1980, modelo com frente “Europa”, motor 1300 a etanol e muito original. Perguntei o preço e o proprietário disse: R$ 3.000,00 (R$ 7.832,53 hoje). Olhei para um amigo que me acompanhava e disse à ele para irmos embora. Àquela época, só um louco pagava esse valor em um Fiat 147, por mais conservado que o carro estivesse.

Com o dono pedindo R$3 mil pelo 147 GL 1980, logo olhei para o meu amigo e fomos embora (Foto: Leonardo França/acervo pessoal)

Meu carinho por esse carro era grande, pois aprendi a dirigir em um Fiat 147 Standart Azul Tirreno 1980/1980, modelo Brio 1300 a etanol, que pertenceu à minha mãe nos anos 90, e resolvi olhar o “Europa” com mais detalhes. Com exceção das Rodas Scorro aro 13 similares às do Gol GT, o carro era muito original: faróis e lanternas Arteb, lanternas traseiras M.Carto, volante e escapamentos originais, adesivos antigos por todos os vidros, além de uma carroceria sem ferrugens, muito alinhada, além de um bagagito íntegro, raro neste carro.

O carro estava bastante íntegro e, melhor, sem po dres ou ferrugem (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Meu amigo, colocando oxigênio em meu fogo mental, me aconselhou a dar uma volta no carro. Ao ligar seu motor, notei um funcionamento suave e muito silencioso, e colocando ele em movimento, logo fiquei encantado. Não deixava transparecer, mas admirava o fato de um carro tão antigo e malvisto no mercado estar em um estado tão bom, com um rodar tão silencioso, sem ruídos internos, sem vibrações, e com freios tão eficientes.

Depois de muito olhar o carro, decidi dar uma volta no carro, e curti logo de cara (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Marcando 89 mil km no hodômetro, o ex-proprietário afirmava que a quilometragem era original, pois o carro tinha sido de único dono até 2003, passando para ele na sequência. Se isso era verdade, jamais saberei, pois na época não existia o laudo cautelar. Mas a conservação convencia. No manual, constavam as primeiras revisões, e ele afirmava ter trocado correias, cabos, velas e óleo do motor pouco tempo antes.

Ao mostrar para meu pai, a aprovação foi imediata, e para minha mãe (que tinha tido três, sendo um deles 0 km nos anos 80), outro sinal positivo. No dia seguinte, levei o 147 para o mecânico e tive o aval final, fechando negócio no mesmo instante e comprando assim o meu primeiro carro.

O carro realmente estava muito bom em praticamente todos os aspectos, o vendedor me garantiu que os 89 mil km do hodômetro eram reais e o carro era de segundo dono (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Na faculdade, meus amigos me chamavam de louco por ter comprado um carro tão antigo, mas logo o 147 ganhou o carisma de todos por sua conservação e as comparações com o Mini do Mr.Bean – talvez graças aos 1,81 m de altura que tenho. Mas eu deixava claro: o nome dele era Quindim, tornando-o famoso por seu codinome.

Depois de um tempo sendo chamado de louco por ter comprado um carro antigo, logo o 147 caiu nas graças dos meus amigos de faculdade, que nos comparavam até com o Mr.Bean e seu Mini amarelo (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Fabricado em 1980, o Fiat 147 GL Amarelo Canarie tinha motor 1300 com 62 cv de potência SAE* (55 cv ABNT) a 5.200 rpm, 11,53 kgfm de torque a 3.000 rpm, fazia de 0 a 100 km/h em 18s12 e atingia 139,5 km/h de velocidade máxima. Seu consumo era muito bom para o primeiro motor a etanol fabricado no Brasil: 6,95 km/l na cidade e 10,15 km/l na estrada. Com um tanque de 38 litros de capacidade, sua autonomia era de 385 km em estrada.

Em 1 mês com ele, tirei as rodas Scorro e coloquei outras originais Fiat, escondendo-as depois com umas calotas do Uno CS de 1988 (eu não sei por que fiz isso), além películas escuras nos vidros (também não sei por que), um volante Cougar de época com 33 cm, spoiler dianteiro da versão Rallye, moldura na entrada de ar no capô, um toca CD Pioneer, um subwoofer de 10” no porta-malas (presente de um amigo e usado até hoje em meu carro atual), faróis de neblina e conta-giros na coluna.

Com várias mudanças estéticas e escapamento modificado de 2,5″, ele definitivamente não fazia barulho de Fiat 147 (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Ainda escureci a luz de ré, apliquei um vinil ligando as duas lanternas traseiras e instalei um escapamento personalizado com a saída de 2,5 polegadas. Uma coisa posso garantir: ele não fazia barulho de Fiat 147.

Morando em Uberlândia/MG, ia sempre à Araguari/MG comer coxinha no bar Apollo, â Catalão/GO comer pamonha frita no posto JK, fazia passeios turísticos como em Estrela do Sul/MG, Monte Carmelo/MG, Romaria/MG ou Sacramento/MG, quase sempre acompanhado por minha amiga e hoje comadre, fora algumas exposições de carros antigos em Caldas Novas/GO, Araxá/MG e Brasília/DF, acompanhado de grandes amigos. Houve até uma viagem para as festividades do Natal em que minha mãe preferiu ir de Fiat 147 ao invés de Mille EP, tamanha a confiabilidade e carisma do Quindim.

O carro teve também algumas missões importantes, como resgatar o namorado de uma tia com o carro quebrado em Nova Ponte/MG (era um Gol Special 1.6 2003), buscar meu então gerente de marketing (que se apaixonou pelo carro) no aeroporto para um evento, levar minha irmã em festas ou mesmo da escola para a casa, além de sempre dar carona para meus amigos ou mesmo fazer os inúmeros passeios pela madrugada, ao som de Led Zeppelin, Linkin Park, Avril Lavigne ou Michael Jackson.

Participamos até do rally universitário promovido pela Fiat, onde o Quindim foi o segundo carro mais antigo do evento, perdendo apenas para outro Fiat 147 1977 que vinha de BH. É claro que não ganhei, mas a diversão foi garantida. Além de tudo isso, o Quindim fazia muito sucesso com as meninas, e eu não deixava passar nenhuma oportunidade de aparecer acompanhado por uma bela moça no banco do passageiro, mesmo que não fosse minha namorada.

Certa vez fui convidado para um jantar de final de ano da empresa. Coisa fina em um dos restaurantes mais caros da cidade. Eu não queria ir, e minha mãe então ofereceu o Mille EP, achando que era por conta do carro. Logo eu retruquei falando que problema não era o carro, mas sim o fato de todos os funcionários da empresa irem acompanhados, e eu à ocasião estava sem companhia – insegurança de um garoto de 21 anos.

Logo uma amiga se ofereceu para ir, e disse ainda que ia arrasar e que todos olhariam para nós. Lavei o carro, busquei ela em casa e por sorte, ao chegar no restaurante, tinha uma vaga bem na frente. Desci do carro e abri a porta do passageiro, coisas de um bom cavalheiro que sou. Todos olhavam aquela cena: o carro em estado impecável, com uma morena linda de cabelos lisos, vestido longo deslumbrante e de decote discreto descendo dele.

Para ir ao jantar chique, lavei o Quindim, me arrumei e fui buscar minha amiga, que estava muito bonita (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Entramos no restaurante e logo um colega de trabalho me elogiou por eu ter ido com o Quindim, questionando em seguida se a moça era minha namorada (acho que ele não acreditava que ela entrou em um 147). Antes que eu respondesse, ela disse que sim, me pegando de surpresa com a resposta, afinal, isso não estava combinado. Eu não desmenti e a noite foi bastante divertida.

Após o jantar, ela pediu que déssemos uma volta pela cidade antes de deixá-la em casa, pois ela queria passear e ouvir Madonna no Quindim, afinal, ela era maior fã do carro e foi a primeira a andar nele no dia em que eu o comprei. Ao deixá-la em casa, ela agradeceu e disse que a noite tinha sido perfeita, não só pelo jantar, mas também pelo passeio, pela música e as risadas. Antes que ela fechasse o portão, me questionou se eu tinha gostado também, e eu disse que sim, mas que não sabia se tínhamos feito certo em falar que éramos namorados, pois tínhamos mentido e tinha faltado algo. Nunca disse a ela que faltou um beijo.

Outra vez fui para uma exposição de carros antigos em Caldas Novas/GO com outros dois amigos, em uma viagem do tipo bate-e-volta. Na ida, a direção começou a vibrar bastante e ao parar o carro, constatei que um pneu dianteiro abriu bem na banda de rodagem. Mesmo não sendo recauchutado, aquele Pirelli P4 145SR13 de quase 15 anos não resistiu. Passado o susto, coloquei o estepe (mais antigo ainda, mas aguentou) e seguimos viagem. Passamos pelo posto policial de Corumbaíba/GO e os policiais olharam o carro passando com tanta atenção que achei que seríamos parados.

Voltando, na estrada, aí sim fomos parados, mas o desfecho foi bem mais engraçado do que temíamos (Foto: Acervo pessoal/Leonardo França)

Chegamos à exposição, tiramos fotos, enchi o tanque para voltar e quando passamos de novo pelo posto policial, ao anoitecer, fomos parados. O policial, bastante sisudo, pediu os documentos e começou a olhar o carro como se procurasse defeitos. Eu pensava em muitas coisas naquele momento, e quando ele olhou o escapamento, pediu para que eu abrisse o capô. Neste momento eu fiquei bastante tenso, pois o escapamento era personalizado, e achei que teria o carro guinchado. Quando eu abri o capô, ele olhou o motor e disse para seu companheiro:

-Não falei que era um 1300?! Eu sabia!

Ambos riram, falamos sobre o carro e outros Fiat’s que este policial teve, depois fomos liberados para seguir viagem.

Em 2009 eu já tinha um dos sete VW Gol que tive até hoje, e, após comprar meu primeiro apartamento, precisei me desfazer do Quindim, vendendo-o para um senhor da cidade de Coromandel/MG que pagou R$ 4.800,00 à ocasião. A tal amiga do jantar ficou arrasada, e por anos fui questionado não só por ela, mas por vários outros amigos sobre o paradeiro do Fiat 147.

Em 2020, reencontrei o Quindim após 11 anos. Mesmo com várias outras marcas de uso e detalhes perdidos no caminho, ele ainda se mantém íntegro e rodou só 36 mil km desde 2009 (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

Após 11 anos, em junho de 2020, resolvi procurar o carro e o encontrei ainda em Coromandel/MG, mas com outro proprietário. Sua conservação está longe do ideal, com muitas marcas de uso e do tempo, mas o reencontro foi emocionante: o 147 preservava todos os adesivos que eu coloquei, além do conta-giros na coluna, o volante e o escapamento personalizado. Constatei também que rodaram com ele neste tempo apenas 36 mil km.

Iniciada a negociação de, talvez, recomprá-lo, o projeto foi abortado por conta da pandemia, mas mantivemos contato, e quem sabe um dia o Quindim volta para casa.

Quem sabe um dia o Quindim volta pra casa (Foto: acervo pessoal/Leonardo França)

*SAE: potência bruta, medida utilizada até meados de 1983. Desde então o Brasil adota a medida ABNT, com a potência liquida, descontando assim todos os periféricos que “roubam” a potência do motor.

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Leonardo França é formado em gestão de pessoas, tem pós-graduação em comunicação e MKT e vive o jornalismo desde a adolescência. Atua como BPO, e há 20 anos, ajuda pessoas a comprar carros em ótimo estado e de maneira racional. Tem por missão levar a informação de forma simples e didática. É criador do canal Autos Originais e colaborador em outras mídias de comunicação.