Entre ovos e galinhas, os motores vieram primeiro

Há casos em que se pergunta quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Quando se fala em automóveis vs. aviões, existe uma certeza: a de que primeiro vieram os motores. Os carros não vieram antes somente sob o ponto de vista temporal, mas principalmente industrial. Era possível pôr um dispositivo artesanal num veículo terrestre em que a confiabilidade era muito mais de cunho mercadológico do que de segurança.

Antes de carros e aviões, vieram os motores (Foto: Fiat/divulgação)

Ter um motor quebrado poderia, no máximo, fazer o veículo parar, causando, quando muito, um grave transtorno. Justamente por os motores não poderem ser críticos, caso contrário não seriam aceitos pelo mercado, as caldeiras tiveram vida curta no ramo dos automóveis. Ninguém queria usar cotidianamente uma verdadeira bomba que poderia – como de fato ocorreu – lançar o motorista sobre a torre de uma igreja.

Carros a vapor não vingaram: eram literalmente bombas ambulantes, capazes de jogar longe seus ocupantes (Foto: reprodução/Getty Images)

A confiabilidade tornou-se imprescindível na medida em que a autonomia cresceu. É que carros deixaram de ser uma curiosidade para tornarem-se um meio de transporte e ninguém queria sofrer uma falha no meio do nada. Depois da confiabilidade veio o desempenho. É que carros deixaram de concorrer com a tração animal, passando a competir entre si, o que levou o desempenho a outro patamar, com motores potentes, aptos a funcionar continuamente, e principalmente controláveis.

Quando os automóveis passaram a competir entre si, subindo o patamar em comparação com a tração animal, foi o passo seguinte depois da confiabilidade: desempenho (Foto: divulgação/Mercedes-Benz)

Seu uso na aviação viabilizou-se em seguida. Como é voz corrente entre os aeronautas, “O céu não tem acostamento”. Motores a combustão não podem ser temerários como os a vapor, mas, em voo, críticos passam a ser potência e confiabilidade. Ou seja, não existe margem de erro ou espaço para problemas no caso das aeronaves.

O primeiro V8 da história era Peugeot e equipou o 14-bis de Santos Dumont. Daí para frente os motores aeronáuticos foram-se distanciando dos automobilísticos, até que se acreditasse que seria impossível usarem-se motores para andar na terra no lugar dos que se destinavam aos aparelhos que voam.

Para os automóveis, o importante era a potência específica, tomando o deslocamento como base (hp/l); para os aeronáuticos, a potência específica com base no peso (hp/kg). Foi a II Guerra que levou a aviação à indústria. Até então, ou se usavam motores automobilísticos, ou encomendavam-se motores especiais aos artesãos. O desafio passou a ser fabricarem-se motores cada vez mais potentes e leves, encarecendo o produto e tornando-o inviável para o consumo em massa.

Some-se a isso o fato de a confiabilidade ter induzido a simplicidade, com motores radiais e refrigerados a ar, sempre no intuito de otimizar a dissipação e reduzir o número de peças móveis por cilindro, sem descuidar da potência em relação ao peso. Era natural que, como produto e como indústria, os caminhos fossem se distanciando. Para que se tenha uma ideia, os primeiros Jeep usavam motores Continental com cabeça chata e válvulas no bloco. Foi só depois da II Guerra que a Continental passou a dedicar-se somente aos aviões.

Durante a Segunda Grande Guerra, os Jeep combatentes usavam motores Continental de cabeçote plano: por isso seu capô mais baixo se comparado aos modelos posteriores (Foto: divulgação/Jeep)

O advento dos motores a turbina tirou os motores a pistão do mercado aeronáutico comercial e militar, confinando-o ao da aviação geral. Isso reduziu seu mercado, e consequentemente a escala, impedindo sua evolução técnica. Tanto que os Continental de ciclo Otto mais vendidos têm projeto da segunda metade dos anos 1940.

Rolls-Royce Merlin V12 foi um dos motores aeronáuticos a pistão mais famosos de meados dos anos 1900 (Foto: reprodução/Wikipedia)

Na verdade, sejam os turbo-eixos, sejam os motores de jato puro e os turbofan, eles criaram indústria própria, como é o caso da entrada da GE, bem como a saída da Rolls-Royce e Pratney & Witney do mercado de motores a pistão. Este último, aliás, passou a ser dominado pela Continental para aviação geral e pela Rotax para aviação experimental, sempre com motores de cilindros opostos e refrigeração a ar.

A estagnação da indústria de motores aeronáuticos a pistão foi agravada pelas restrições legais à aviação geral imposta pelos Estados Unidos, atendendo o fortíssimo lobby das seguradoras. Antes disso, alguns modelos de aeronaves tinham o apelido de “doctor killer” pelo fato de médicos bem remunerados as adquirirem a acidentarem-se com frequência acima da esperada. Algumas empresas de automóveis tentaram aproveitar essa deixa, como foram os casos da Mitsubishi e Porsche no final dos anos 1980.

Também a pistão, o PFM 3200, feito pela Porsche, tinha muita proximidade com os motores dos 911. Assim como com a Mitsubishi, não deu certo (Foto: Porsche/divulgação)

A indústria automotiva não obteve sucesso porque seus motores eram de rotação elevada, obrigando o uso de redutores para acionar as hélices, o que acrescentava peso, além de aumentar o custo com revisões obrigatórias. Some-se a isso o conservadorismo do consumidor e as dificuldades de homologação, e o mercado tornava-se restrito demais para atrair grandes conglomerados.

Motores ciclo Diesel cresceram e apareceram depois dos impasses com a gasolina de aviação, Avgas (Foto: reprodução/shutterstock)

As restrições ambientais, bem como o preço da gasolina de aviação (Avgas) fizeram, a partir do início dos anos 2000, que experimentos com motores ciclo Diesel ganhassem número e corpo. Foi o caso da Subaru com um motor 2T Diesel com explosão simultânea do início dos anos 2010, projeto abandonado a seguir. Outros, independentes, surgiram e morreram porque não teriam escala suficiente para justificar o investimento em ferramental e processo industrial.

A solução foi voltar a compartilhar motores com a indústria automobilística, porém, no sentido oposto ao das experiências anteriores. Dois fatos contribuíram para isso: o primeiro é que a Avgas tende à extinção por ser extremamente tóxico, poluente, caro e explosivo (fora o preço três vezes maior que o querosene de aviação, que pode ser queimado por motores do ciclo Diesel), e o segundo é que os motores automobilísticos evoluíram sobremaneira nos últimos oitenta anos. A prova de que os motores dos automóveis se tornaram mais que confiáveis é que, hoje, é muito raro encontrar um carro guinchado ou mesmo de capô aberto pelas ruas, a despeito de haver mais de um bilhão deles circulando.

Mesmo fábricas tradicionais como a Continental tiveram de se render ao FADEC (Full Authority Digital Engine Control), o que é um nome bonito para fazer o que qualquer sistema de injeção faz nos automóveis, desde os mais baratos. Trata-se da adoção de um sistema eletrônico de injeção que ajusta mistura e avanço mediante a leitura de temperatura, pressão atmosférica, podendo agregar algumas especificidades como ajuste do passo da hélice e controle de rotação segundo leitura de torque. Esses sistemas têm sido instalados por empresas especializadas mundo afora em motores ciclo Otto, além de poderem vir em motores novos da Continental ou Rotax.

Motores automotivos de ciclo Diesel nos aviões: a Diamond, austríaca, é uma das que investe com força (Foto: Diamond/divulgação)

A primeira empresa a recorrer aos motores Diesel automobilísticos para uso aeronáutico em série foi a Diamond austríaca que, via sua subsidiária AustroEngine, adquire motores Mercedes-Benz já montados, instalando sistemas eletrônicos de redundância, bem como aumentando vazão e pressão do sistema de superalimentação para compensar a altitude de operação de seus modelos de aviões, como o DA62, que usam dois o OM640, e o DA50, que usa um OM642 alterado pela Continental, tanto nos turbos como no desenho do cárter, visando a instalação no nariz da aeronave.

Segundo o engenheiro André Cateb, da Aeromot, representante da Diamond no Brasil, depois de adquirida pelos chineses, a Continental investiu numa nova linha de produção na Alemanha onde remanufatura os motores Mercedes OM642 com seis cilindros em V, 3 l e 296 hp, mantendo a planta americana para a produção dos motores de ciclo Otto. A Austron fica com os motores OM640, com quatro cilindros em linha, 2 l e 180 hp.

As unidades de seis cilindros em V, encontradas nos DA50, tem produção na Alemanha (Foto: Aeromot/divulgação)

Todos são refrigerados a líquido, o que garante a qualidade do funcionamento independentemente do clima e da altitude. Também em ambos casos, o custo de revisão diminui porque, ao contrário dos motores de ciclo Otto que são revisados a cada 50 h, esses podem ser revisados a cada 100 h voadas, aumentando a disponibilidade das aeronaves.

Tudo indica que a demanda da aviação por motores automobilísticos de ciclo Diesel tende a aumentar e, quem sabe, antes de se tornarem elétricos, serão na maioria convertidos para esse ciclo. O futuro dirá.

Compartilhar:
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.