Calma! O caminhão autônomo vem antes

Esta matéria foi publicada originalmente no Best Car Web Site em 15/05/2018, a quem agradecemos a conservação. Trata-se do segundo tópico de uma nova série, que representa a meta da logística sobre rodas. Na próxima quinzena, mostraremos que passos já se deram nessa direção.

Penso que nada causa mais curiosidade entre os amantes de automóveis do que o carro autônomo. Alguns discutem o assunto com vontade de que se popularizem, outros por horror a verem-se fora do comando e da sensação de liberdade que o carro dá.

Ninguém fica alheio à discussão que versa quase exclusivamente sobre o veículo de passeio como transporte motorizado individual que pode ou não ser compartilhado. Acontece que a economia capitalista funciona em busca de resultado, daí pensa-se no carro autônomo como transporte público individual e não como mero substituto do motorista.

Elétricos e parcialmente autônomos, os Tesla são sempre pautas quando o assunto é o futuro da mobilidade (Foto: Tesla/divulgação)

Lendo uma matéria em uma revista de logística do MIT (Massachusetts Technology Institute), fiquei estarrecido ao ver que o que os americanos chamam de “Self driving truck” (caminhão autônomo, em português) é alvo de estudos mais profundos e com participação maior das principais universidades do mundo do que o próprio carro de passeio, mesmo que este último esteja na mídia com infinitamente mais destaque.

É que, como já discuti em outra matéria, o veículo, como meio de produção, é investimento; como uso para lazer, é gasto.

Em países que têm no caminhão o esteio de sua logística, ansiar por veículos que dispensem o motorista há de ser um sonho dourado. É só imaginar um veículo que roda dia e noite sem parar, sem que haja ninguém que necessite ir ao banheiro, almoçar, jantar, dormir e, principalmente, sem restrições trabalhistas.

Para países dependentes do transporte rodoviário, ter caminhões autônomos trabalhando todo o tempo seria um sonho dourado (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

Imaginemos que um profissional receba R$3.000,00 ao mês com 100% de encargos. Imaginemos agora que ele receba R$150,00 como diária de viagem e trabalhe vinte e seis dias. Seu custo mensal será de R$9.900,00 por mês.

Suponhamos agora que a legislação trabalhista seja cumprida e o caminhoneiro dirija 10 horas/dia numa otimista velocidade média de 80 km/h. mesmo que o caminhão seja conduzido por mais de um profissional e não pare sequer aos domingos, para efeito de custos, o motorista terá conduzido por 20.800 km/mês. Isso significa aproximadamente R$0,45/km.

Se a vida útil programada para o caminhão for de um milhão de quilômetros, em valor presente, a empresa economizaria aproximadamente R$300 mil, quase o gasto com a reposição do veículo.

A economia de gastos em um caminhão autônomo seria quase suficiente para comprar outro modelo novo (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

O leitor pode argumentar que a maior parte de nossa frota é conduzida por caminhoneiros autônomos e que seu custo está embutido no valor do frete, que é negociado em valores fechados.

É verdade, e isso faz transparecer o uso de rebites, excesso de carga e todas as distorções que provocam os acidentes que vemos anunciados diariamente e, como “não existe almoço grátis”, alguém tem que pagar por isso. Indo mais longe ainda, sem que o veículo possa ser guiado por seres humanos, o roubo de carga fica mais difícil.

Só que o caminho para o paraíso é cheio de obstáculos. A priori, os algoritmos destinados a veículos de carga são muito mais complexos do que os voltados aos carros de passeio. O tamanho é mais significativo e, principalmente, a carga altera sensivelmente o comportamento dinâmico, o que introduz, pelo menos, duas variáveis quase impeditivas.

Claro que existem obstáculos nesse caminho, como por exemplo o comportamento do software de automação do caminhão com diferentes tipos e tamanhos de carga (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

O interesse econômico, no entanto, supera quaisquer barreiras. Enquanto nos carros de passeio a imprevisibilidade dos demais motoristas, especialmente humanos, é fator preponderante, os veículos de carga podem trafegar em pistas segregadas por barreiras físicas e até mesmo construídas para esse fim.

Além disso, sendo economicamente viável, os empresários de logística não postergarão a compra de novas máquinas como faria o motorista autônomo que, ao fim das contas, perde seu mercado.

As pesquisas são ainda mais ambiciosas, imaginando cavalos mecânicos poderosíssimos, verdadeiras usinas termoelétricas volantes, capazes de energizar motores em carretas dotadas de sistemas de direção que se acoplam em comboios rodoviários virtualmente ilimitados.

Além disso, os cavalos mecânicos autônomos seriam poderosíssimos, enormes usinas de força termoelétrica (Foto: Mercedes-Benz/divulgação)

É que hoje, dado que as carretas não possuem inteligência própria, pensar em rebocar mais que três delas com um cavalo mecânico tradicional chega a ser temerário. Isso resolve o maior problema dos trens, o transbordo, haja vista que os vagões não podem deixar os trilhos, enquanto o comboios são dinâmicos, separando as carretas que assumem seu caminho, ao passo que outras podem incorporá-los durante o percurso.

Isso já se faz com os vagões, visto que trens podem deixar alguns em certas estações, enquanto incorpora outros, só que a capilaridade fica longe de ser atingida porque sempre será preciso descarregar vagões e carregar caminhões, quando não usar os armazéns da empresa ferroviária. Com as carretas auto-dirigíveis, o processo de acoplamento e desacoplamento deixa de requerer estações, podendo até ocorrer em velocidade de cruzeiro.

A parada e descarregamento são obrigatórios nos trens que precisam fazer o transbordo, bem mais complicado que nos caminhões autônomos (Foto: reprodução/FreePik)

De qualquer forma, a sofisticação, mesmo que economicamente viável, redunda em investimento inicial de maior monta. Assim, a adoção de solução tão mirabolante depende de haver empresas de logística dispostas a correr os riscos que hoje são compartilhados com os motoristas autônomos.

A meu ver, mesmo que o futuro seja o descrito acima, a sociedade não aceita mudança assim tão radical. Para mim, teremos inúmeras etapas intermediárias, começando pela construção das pistas segregadas adjacentes às rodovias já existentes para reduzir o número de incertezas e minimizar o número de algoritmos envolvidos.

Paralelamente, as carretas incorporarão inteligência, tal que aumente a eficiência da condução humana, permitindo que seu número aumente nos comboios que trafegam fora das pistas segregadas.

Essa automação – penso eu – vai ocorrer dos maiores veículos para os menores, até chegar aos VUCs (veículos urbanos de carga), visto que estes aproximam-se em esforço robótico aos carros de passageiro.

Os VUCs, por terem esforço robótico mais aproximado com o dos carros de passeio, deverão ser os últimos a adentrarem no mundo dos caminhões autônomos (Foto: Foton/divulgação)

Resumindo, a condução autônoma é um caminho sem volta, mas, ao contrário do que se propaga na mídia, em geral, e na especializada, em particular, o esforço priorizará os setores em que o retorno econômico for mais sentido e, muito provavelmente, os carros de passeio não estão em primeiro lugar no rol de prioridades. Por causa disso, motoristas acalmai, pois o caminhão autônomo vem antes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.