Tarifa-zero do transporte público e o modelo de mobilidade urbana (Parte IV)

Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil

O que mais assusta, quando se fala em tarifa-zero, é a suposição de que isso vai recair sobre os impostos municipais, aumentando a carga tributária. Sim, é que alguém vai ter que pagar por isso e, graças ao elitismo de nossa sociedade, cria-se o mito de que será a classe média a arcar com tal despesa. Alguns acham que os ônibus vão ficar lotados porque os mais pobres tenderiam a fazer de coletivo os percursos que antes faziam a pé, para economizar o valor da passagem. Outros ainda afirmam categoricamente que a segurança seria prejudicada porque até um mendigo poderia subir no carro e assaltar os passageiros.

Alguns imaginam ônibus superlotados e transportando pessoas ditas “perigosas”, mas a maioria crê que a conta do programa de tarifa-zero acabaria por cair no colo dos contribuintes (Foto: reprodução/Agência Conexões)

Há muitos outros argumentos, todos infundados e cruéis, sendo o segundo, entre os elencados, o campeão de falta de solidariedade. Não passa pela cabeça de ninguém a possibilidade de se desvincular os trajetos do faturamento potencial, possibilitando a racionalização do transporte público, e, dentro dele, do transporte coletivo, reduzindo o dispêndio das prefeituras. Em São Paulo, por exemplo, os subsídios ultrapassam largamente os R$10 bilhões ao ano.

Existe uma hierarquia lógica na mobilidade urbana, mesmo que ela não seja respeitada na imensa maioria das cidades do mundo. Em primeiro lugar, deve vir o pé humano; em segundo, transporte coletivo; em terceiro, os meios individuais públicos e, por último, o transporte individual privado. Traduzindo: em primeiro lugar vem a caminhada; em segundo, ônibus, metrô e outras formas compartilhadas; em terceiro, os táxis e os sistemas por aplicativo; por último, carros e motos particulares.

Mesmo que não a sigam como o esperado, a hierarquia da mobilidade é pra lá de importante (Foto: reprodução/EPTC)

Só que a mobilidade urbana não se limita a levar gente de um lado para o outro. Engloba também o transporte de carga e o serviço de entregas. A movimentação de carga já é racionalizada e vai ficar fora desta análise. Como é hoje, mesclar o transporte de gente com o serviço de entregas é impensável. Tirando os Correios, caminhar para entregar algo é raríssimo, seja pelo medo de roubo, seja pelo ritmo a que os entregadores são obrigados. Houve o tempo em que se mandava um office-boy levar ou buscar algo de ônibus, e a extinção do uso do transporte coletivo no serviço de entregas deve-se a que o modelo atual se destina a levar gente para o trabalho ou para a escola, trazendo-os de volta para casa, não como indutor do desenvolvimento.

A tarifa-zero permite que todos os modelos de otimização sejam usados, pois lidará somente com dois eixos (mínimo custo e máxima disponibilidade), no que os economistas chamam de modelo “minimax”. Esses modelos estão muito mais próximos de nós do que se imagina. Quando se projeta um prédio, por exemplo, é preciso calcular quantos elevadores serão instalados e qual será o trajeto de cada um.

Em prédios muito altos, tende-se a fazer o percurso por etapas, ou seja, com o passageiro fazendo uma baldeação no 50º e no 100º andar, caso pretenda ir ao terraço no 130º piso. Já em prédios mais baixos, mas com grande movimento, pode-se fazer com que alguns elevadores parem somente nos pares e outros nos ímpares. No primeiro caso, a intenção é economizar energia, e no segundo é evitar filas (melhor disponibilidade). Há prédios muito altos, cujo tráfego é elevado, até mesmo por ser alto mesclando os dois conceitos. Nos três casos, a premissa básica é que a atividade econômica para que o prédio foi construído dê-se nos andares e não nos elevadores.

A adequação do transporte público deverá seguir a lógica das necessidades versus locais de cada linha (Foto: César Mattos/viacircular.com.br)

Transpondo o pensamento para a mobilidade urbana, a atividade econômica se dá na origem ou no destino, cabendo ao transporte eliminar quaisquer entraves intermediários. Haverá bairros tipicamente comerciais, cuja necessidade seja a disponibilidade para maximizar o fluxo de consumidores. Em outros bairros, a necessidade poderá ser a capilaridade, exigindo carros menores e capazes de transitar por ruas estreitas.

Mesmo mantendo-se a polêmica decisão por privatizar o transporte coletivo, desvincular a atividade da expectativa de faturamento permite, além de setorizar as concessões, tornar as concessionarias específicas com material rodante adequado ao serviço. Resumindo: a tarifa-zero é o esteio para a geração de renda. Não um estorvo, como se tem interpretado até hoje.

Programa de tarifa-zero é esteio para gerar renda, e não estorvo (Foto: SPTrans/divulgação)

 

A coluna Carro, Micro & Macro, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e nem sempre reflete os ideais e posicionamentos do Carros&Garagem

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.