Quando o desespero fala mais alto que as leis de trânsito

Esse “causo” chega a ser dramático, e o desespero do desenrolar dos fatos colocaram em apuros nosso personagem libanês. Ele passou poucas e boas em uma tarde fria e chuvosa de domingo, na metade de algum ano da década de 80. Para comemorar o final do curso e a graduação do amigo Goar Odyxe Duarte Neto, que tinha se formado como piloto de aviação, uma turma se reuniu para um churrasco de confraternização entre os formandos.

Goar foi ao tal churrasco com mais quatro amigos, sendo outros três formandos (como ele), além do simpático e alegre libanês Farid Fuad, que era pai de um dos integrantes da turma. Os cinco foram ao evento na cidade de Mogi das Cruzes a bordo de um Monza Hatch novinho, que havia sido um presente de Farid para seu filho Mansur, também formando em aviação. Era um dia de domingo bastante festivo e feliz para todos.

Mas, como é comum nessas ocasiões, a alegria dos participantes algumas vezes excede o bom senso: Depois de comer muita carne engordurada, caprichar na dose de maionese e comer bolo com bastante chantilly, Farid, no final, ainda encheu a cara de chocolate que era servido como sobremesa e, para completar, como saideira, o libanês abusou do chimarrão…O resultado final dessa brincadeira colocaria o Farid em apuros.

O silêncio do Libanês

Na viagem de volta, seu filho Mansur dirigia o Monza, e o seu Farid, feliz naquele final de dia, estava falante e cheio de contar piadas. Nosso relator Goar estranhou quando o alegre libanês se calou de uma hora pra outra. Os três caronas no banco traseiro acharam esquisito o repentino silêncio do Farid, e pensaram até que poderiam tê-lo ofendido em algum comentário sem perceber. Mas a realidade não era bem essa: na verdade, toda aquela comilança do domingo começava a se manifestar.

Mesmo frio e garoando, “seu” Farid abriu a janela do carro e colocou a cabeça para fora. Parecia até um maquinista de trem. Os caronas e o filho Mansur começaram a achar as atitudes do libanês cada vez mais esquisitas, já que ele se agitava e parecia inquieto no banco do Monza. Quando entraram na marginal Tietê, já em São Paulo, seu Farid disse ao filho em arrastado sotaque árabe: “Vai para escritório, Mansur!”.

Seu Farid tinha um próspero escritório de contabilidade na Avenida Cásper Libero, e a grande maioria de seus clientes eram patrícios libaneses que tinham lojas de roupas na região do Bom Retiro, relativamente próximo da tal contabilidade.

O filho estranhou ainda mais o pedido do pai: “Fazer o que no escritório, pai? Hoje é domingo, não tem ninguém lá trabalhando; porque não vamos para casa?”, mas “seu” Farid, em tom alterado e em volume mais alto, bradou: “Vai pra escritório, Mansur, e não discute com seu pai!”

Mansur, obediente aos desejos do pai, não perguntou mais nada e rumou para o escritório, no centro, que era bem mais próximo do que a casa do libanês, que ficava na região de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.

“Passa farol, Mansur”

Chevrolet/Divulgação

Vindo pela Marginal Tietê, Mansur pegou a Avenida Tiradentes, indo diretamente ao centro, de acordo com as ordens do seu pai. Logo no início da avenida, um semáforo de pedestre obrigou o Monza a parar. Naquela tarde fria e de garoa, não havia ninguém na rua, muito menos pedestres, mas o sinal obrigava a parada obrigatória.

Impaciente, seu Farid falou em tom alto: “Passa farol, Mansur!”, mas foi imediatamente rechaçado pelo filho: “Pai, o farol está fechado e assim vou ser multado!”. Seu Farid não teve dúvidas: “Passa farol, Mansur, eu paga multa!”. Diante de um pedido tão firme, Mansur passou o farol fechado e tocou ao escritório. Mesmo andando no limite da velocidade permitida, o libanês interveio: “Corre, Mansur, eu ‘precisa’ chegar rápido na escritório!”.

O filho tentou argumentar: “Vamos ser multados por excesso de velocidade, pai”, mas seu Farid, já suando frio na testa, pediu para o filho chegar rápido na porta do prédio onde ficava seu escritório. A coisa já estava dramática, e, mesmo tomando chuva e vento frio com a cabeça para fora da janela, seu Farid não sossegava.

Finalmente chegaram à porta do tal prédio. O carro nem havia parado e o libanês já abria a porta, em claro desespero de causa. Contam os presentes que ele deu apenas o primeiro passo tentando correr até a escadaria do prédio, mas já no segundo passo ele começou a dar passadas curtinhas e lentas, como se fosse uma japonesa usando um quimono apertado. Mesmo assim, ele subiu a escadaria do prédio com o filho e os caronistas assistindo de dentro do Monza, em passinhos curtos e demorados. A situação já estava fora de controle, a guerra já havia sido perdida e era tarde demais.

Lavou, tá novo!

Depois de uma demora de cerca de 20 minutos, Farid Fuad voltou ao carro com outro semblante, novamente feliz e sorridente, e, mais do que tudo, aliviado. Tudo aquilo que afligia o seu bem-estar havia sido eliminado. Mas, claro, estamos falando de um árabe que não desperdiça absolutamente nada. Em condições normais, qualquer pessoa exposta a essa situação teria se livrado da cueca, jogando-a fora na lixeira mais próxima. Mas seu Farid, não!

Ele lavou e salvou a coitada da lata de lixo. Voltou feliz, sorridente e com pequeno saco plástico na mão, que tinha em seu interior a cueca ainda molhada da lavagem. Em casa ele provavelmente esperou ela secar, e já colocou novamente no uso. Pelejas da vida que ficam em nossa memória, hoje como histórias engraçadas de boas gargalhadas.

Meu amigo Goar? Trabalhou muitos anos como comandante na Varig, primeiramente em voos nacionais e, depois, em voos internacionais. Se você viaja muito de avião, tem uma boa chance de ter voado com o comandante Goar, que trabalhou também durante muitos anos na Embraer, fazendo entregas técnicas de novos aparelhos da marca em todos os cantos desse nosso mundão de Deus.

Um cara divertidíssimo que, infelizmente, não encontro há décadas. Coisas da vida!

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.