Os meandros da logística e a “uberização” do frete (Parte IV)
A inovação tem três etapas: o sonho, o desenvolvimento e a popularização. Não resta dúvida de que a Humanidade já sonhasse com automóveis desde priscas eras. Parece que, em 400 a.C., os chineses fizeram o primeiro carro a vela. Poderíamos dizer que foi o início do desenvolvimento, porém, estava longe da inovação, que só ocorreu de fato no início do século XX. Sim, os primeiros carros como conhecemos já existiam no século XIX, mas estavam ainda no campo do exótico.
A inovação ocorreu quando as ruas adaptaram-se a ele, quando as restrições ao seu uso massivo foram suspensas. Dali para a frente, só ocorreu a melhoria contínua. Mesmo a substituição do combustível pela eletricidade só se fará inovação quando ela alterar o ambiente para servir o automóvel elétrico de forma massiva. Por enquanto, sua presença ainda é exótica.
O avião só foi realmente inovador na II Guerra, quando se trocaram definitivamente os flutuadores pelas rodas no trem de pouso. Até então, evitava-se o investimento em infraestrutura, fazendo-se os aviões pousarem na água. O mesmo aconteceu com a televisão, o computador, com o celular, entre tantos outros exemplos.
Só que a inovação pode acontecer em outras áreas que não os produtos. Também ocorre no marketing e nos processos numa cadeia de que participam os produtos em várias etapas. A “uberização” é uma inovação de processo, que usa o automóvel e o celular como apoio direto, enquanto a infraestrutura viária e a internet são apoio indireto, também frutos de inovação de processo. É uma teia que forma um paradigma tecnológico.
O Estado participa dessa teia, indiretamente quando investe em infraestrutura, diretamente quando investe em prestação de serviços que podem ou não concorrer com a iniciativa privada. A pujança do automóvel depende intimamente do investimento no sistema viário e na regulamentação como processo. Assim, por mais que se dê uma aura de empreendedorismo aos prestadores de serviço por aplicativo, a ideia não suporta virar a primeira página, visto que usa diretamente todos os recursos públicos à disposição.
É justamente na infraestrutura que reside o próximo passo na uberização do frete como um todo, saindo das entregas de comida e quinquilharias porta a porta para movimentar cargas vultosas como grãos e combustíveis.
Essa uberização passa pela padronização dos caminhões, tendendo aos de plataforma que buscam e entregam containers de virtualmente qualquer coisa, líquida, sólida ou gasosa em qualquer endereço. Assim, em vez de um caminhão-tanque encher o recipiente de uma fazenda, ele pode deixar instalado um tanque cheio e levar o vazio, enquanto a carga seguinte pode ser um container de brinquedos importados.
Para isso funcionar, é preciso centralizar o agenciamento, criando um conta-corrente de carga entre os agentes e entre os caminhoneiros, sempre de forma pública como são o Siscomex e o Recof. Esse rastreio ficaria a cargo de um banco de dados público, provavelmente estatal.
O subproduto dessa tendência, que não se massificou, daí não ser ainda inovação, é justamente a racionalização da infraestrutura, retirando o poder político como motor do investimento. Hoje, a construção de uma estrada, ou de um sistema intermodal, depende 80% do poder político dos beneficiários e 20% da racionalização do interesse público.
Aliás, sempre foi assim. É só ver o traçado tradicional da rede ferroviária do Sudeste, em que os fazendeiros pagavam para o traçado ser alterado para passar pelas suas propriedades. A tendência é para que a racionalização do fluxo de mercadorias tenha como grande beneficiário o conjunto de empresas de logística que possam pertencer ao sistema integrado.
Por fim, espera-se que a inovação em processo e a uberização do frete propicie a adoção de novos meios de transporte como o granoduto e os comboios de carretas elétrica rodando em pistas segregadas nas principais artérias rodoviárias do país. É esperar para ver.