O carro elétrico e o apagão (parte 1/3)

(foto de abertura: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A água

Há pessoas que deixam muita saudade pela sua gentileza. O engenheiro hidrologista Eduardo Engel, a quem dedico esta série, é uma delas. Foi com ele que aprendi sobre a importância da água. Em 1997, os governos federal e de Minas pretendiam privatizar Furnas. Para maximizar o valor, levaram-na à plena carga, exaurindo o seu reservatório que, pelo acidentado do relevo da região, tinha um litoral tão recortado que atingia os 3.000 km. Tamanha extensão criou um mercado de turismo que atingiu 10% do PIB do estado. Seca a represa, cidades inteiras entraram em declínio. Itamar franco pôs temo à privatização, reduziu a vazão, mas a lâmina d’água jamais se recuperou. Quando se enche uma represa pela primeira vez, suas comportas só são abertas depois de atingir o nível desejado.

Durante sua vida útil, é o mesmo que tentar encher uma banheira com o ralo destampado. O volume de entrada terá de ser muito maior que o de saída, caso contrário, o equilíbrio ocorrerá num nível muito mais baixo. Naquele tempo, não havia carros elétricos em escala comercial. Agora, eles mais que reapareceram, estão em ascensão, e junto disso, vemos uma mudança de foco dos investidores, passando das empresas de petróleo às de energia elétrica. Melhor, as empresas deixaram de ser petrolíferas para serem energéticas. Será que o Brasil está pronto para uma transformação tão radical?

Em matérias anteriores, em outros espaços, estimei que a capacidade de geração de eletricidade precisaria mais que triplicar para atender o consumo dos automóveis, sem prejudicar os demais setores de nossa economia. Qualquer estimativa que se fizesse agora seria obsoleta em menos de um ano porque a economia é dinâmica. Ao mesmo tempo em que a geração fotovoltaica, bem como eólica, principalmente no Nordeste, crescem 40% ao ano, o consumo vai se tornando cada vez mais racional pelo emprego de dispositivos mais eficientes.

Audi e-tron foi o carro elétrico mais vendido no mercado brasileiro em 2020, com quase 200 unidades emplacadas (Foto: Lucca Mendonça)

Somente a proibição do emprego de lâmpadas incandescentes economizou o equivalente à geração de Itaipu em um ano. Somem-se os condicionadores de ar, geladeiras e lavadoras de roupas com a adoção de controle eletrônico de seus motores e obtém-se economia de outro tanto, mesmo assim, o acréscimo de aparelhos em atividade, aliado a idiossincrasias como o uso de chuveiros elétricos, induz ao aumento de consumo em âmbito nacional. O advento dos carros elétricos ainda não fez sequer cócegas no consumo do país, mas promete fazer em curto prazo.

As PCH (pequenas centrais hidrelétricas), que estão entre 1 mWh e 30 mWh, aliam-se à estrutura de grande porte para evitar o apagão previsto para ainda este ano. Elas são ligadas à rede integradas de transmissão e distribuição. A integração foi prevista antes dos governos militares, que a pôs em prática. Ela visava a manter o fornecimento o ano inteiro, equalizando a sazonalidade das chuvas num país de dimensão continental como o Brasil.

O modelo de privatização da geração, criado nos anos 1990, entendeu que a eletricidade pode vir de uma diversidade desconhecida de fontes primárias, aproveitando a ideia de integração, e permite que uma empresa construa, por exemplo, uma PCH no Pará e venda sua produção no Sudeste, ou mesmo, use essa energia para consumo próprio em uma sua indústria em São Paulo, pagando pelo uso da infraestrutura.

Apesar de as consequências ambientais do aumento do espelho d’água já serem conhecidas e alardeadas, o uso da água para gerar eletricidade adicional para abastecer veículos elétricos nos leva a um dilema muito semelhante ao dos anos 1980. Durante a massificação do uso do álcool combustível, discutia-se acerca de a terra dever-se destinar prioritariamente à produção de alimentos ou ao suprimento de combustível para automóveis. O próximo debate será sobre se o uso da água deve priorizar energia ou irrigação das lavouras.

O Fiat 147, primeiro carro movido a álcool, foi o início de uma revolução no combustível automotivo (foto: Fiat/Divulgação)

O agronegócio, por menor que seja a consciência, vende somente um produto sob inúmeras formas: a água. A fotossíntese, que retira água do solo, combina com o dióxido de carbono da atmosfera e resulta em vários compostos orgânicos que alimentam homens e animais. Como diria Caetano Veloso: “Luz do sol, que a folha traga e traduz| Em verde novo| Em folha, em graça| Em vida, em força, em luz…”. Soja, milho, arroz, feijão e carne não passam de água em outra forma, daí não haver bem mais precioso e escasso do que ela. Assim, a eletrificação da mobilidade precisar ser precedida por imensos investimentos na diversificação das fontes, posto que o apagão pode não se limitar à energia, mas isso será debatido no próximo capítulo.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.