O carro autônomo e o fim da CNH: absurdo ou tendência?

Apesar de esta coluna não se dedicar à reportagem, há vezes em que lemos coisas ou presenciamos fatos que requerem pronta resposta. Uma delas á o anúncio do fim da CNH, como preconiza o artigo deste link. Ele traz preocupações em dois âmbitos: o político e o prático. Comecemos pelo político, pois é provável que nem mesmo o autor da tal matéria se tenha dado conta da gravidade do que escreveu.

Fim da CNH? Calma aí… (Foto: reprodução/internet)

Desde o século XVIII, o Ocidente, mais propriamente a Europa, vem discutindo o papel do Estado na vida do indivíduo. Os Estados Unidos nasceram das ideias iluministas e do financiamento francês que recebeu para assegurar sua independência. Claro que a insatisfação com a metrópole e a tenacidade dos americanos foram essenciais para o desfecho. Sem os recursos para armamento, porém, nada se faria e a França se ressentia muito da perda de seus territórios na América do Norte durante a Guerra dos Sete Anos.

A Inglaterra podia ter ficado com a faixa ao longo dos rios Mississipi e Missouri até o Golfo do México, mas a França faria o que estivesse ao seu alcance para que a vencedora perdesse tudo, incluindo financiar os revoltosos. Os Estados Unidos passaram a significar a materialização das liberdades individuais, incluindo a livre iniciativa, no campo econômico, e a mínima intervenção do Estado na vida privada do cidadão. Nesse sentido, ao predizer que a indústria vai assumir as regras de trânsito via automação a ponto de dispensar a habilitação do condutor, o texto prenuncia a vitória do privado sobre o público.

Seria uma vitória do privado sobre o público caso a indústria se responsabilizasse pelas regras e possíveis acidentes de trânsito Brasil afora (Foto: reprodução/cobli.co)

Pelo lado prático, não parece ser factível que uma pessoa cega como o autor da presente matéria possa alugar um carro e sair mundo a fora. Será que os fabricantes estariam dispostos a assumir as consequências por eventuais acidentes pelo uso dos seus modelos por pessoas não habilitadas? É que, não se podendo responsabilizar o condutor, todas as culpas recairão sobre o fabricante. Não parece muito provável que a indústria queira pôr em risco sua lucratividade assumindo todas as indenizações.

No caso de uma frota totalmente autônoma, em caso de acidente, a responsabilidade recairia sobre a fabricante, que teria prejuízos grandes com indenizações (Foto: Waymo/divulgação)

Mesmo que a probabilidade de acidentes tenda a zero, o número de veículos torna o número de ocorrências multiplicado pelo valor das indenizações mais que significativo, podendo levar o fabricante à falência. Sim, a falência, posto que seguradora alguma assumiria esse risco, seja por que prêmio for. Há ainda um agravante: a montadora tenderia a tentar repassar a responsabilidade para o fornecedor e o imbróglio percorreria toda a cadeia à montante, diluindo-se. Assim, a empreitada está fadada ao fracasso pelas próprias leis de mercado, em que o medo de perder é sempre maior do que a vontade de ganhar.

Ainda em âmbito prático, seria imprescindível que toda a frota estivesse nas mesmas condições. Hoje, quando a idade da frota brasileira beira os dez anos de uso, o trânsito só funciona porque aparatos como luzes de freio, pisca-piscas, lampejadores de farol, buzina e todos os indicadores de intenção do motorista estão padronizados e entendidos pelos condutores. Da mesma forma, os carros autônomos precisam indicar aos que os circundam o que pretendem fazer, colocando-se todos numa só rede.

Também seria necessário que toda a frota nacional de veículos estivesse nas mesmas condições de uso, o que é complicado de se fazer acontecer (Foto: reprodução/Autoentusiastas)

Essa comunicação precisa ser padronizada entre todos os fabricantes. Posto de outra forma, alguém precisará assumir o papel de normatizador, seja para o padrão de rede, como a linguagem e a fraseologia, tal que não haja surpresas fatais.

Digamos que queiramos implantar um trânsito automatizado e que, realisticamente, seja impossível atualizar toda a frota em curto prazo. Uma saída seria atualizar os indicadores de intenção, deixando-os compatíveis com a rede dos carros automatizados. Nada garante que o equipamento seja usado corretamente, ou mesmo que seja instalado, tamanho é o número de veículos não licenciados em circulação por todo o país. O nível de fiscalização requerido, retirando de circulação todos os carros irregulares, seria ainda maior que o de hoje, garantindo a presença do Estado, ao contrário do que preconiza a matéria que deu origem a esta.

Além do mais, as fiscalizações de trânsito requeririam muito mais frequência e eficácia, o que seria papel do Estado, o mesmo que seria deixado de lado na exigência de habilitação (Foto: Fernando Chauchuti)

Sim, o grau de automatização dos automóveis é, e continuará sendo, crescente. Nâo havendo uma normatização clara pra o comportamento de todos os automóveis, o convívio entre eles não parece nada pacífico. Será preciso criar um órgão supranacional para que todos os carros falem a mesma língua e, principalmente, tenham reações padronizadas. Caso contrário, seu convívio não será nada pacífico. Se essa padronização exigir infraestrutura nos logradouros públicos, o Estado precisará estar mais presente do que hoje.

Seria preciso ainda padronizar a língua dos carros, o que talvez exigisse mudanças em logradouros públicos e sinalizações viárias. Mais uma vez, o Estado seria obrigado a “entrar na conversa” (Foto: reprodução/Freepik)

Resumindo, a extinção da CNH não está no horizonte. Se estiver depois dele, considerando que a Terra é redonda, serão necessárias várias voltas para que fique visível.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.