Fórmula 1, sumidouro de tecnologia (parte 4/4)

Motores e periféricos

Se os carros não precisassem de padronização, a categoria não teria uma fórmula. A questão é o quão restritiva ela pode ser. Já houve quem contestasse o excesso de regulamentação e inventaram-se categorias como a Fórmula 5000, que teve competições nos Estados Unidos e Europa entre 1968 e 1982, sempre com motores comerciais de até 5 litros de deslocamento. O competidor poderia usar o motor que bem entendesse, desde que não excedesse o deslocamento preconizado, tanto que muitos correram com motores de 2 litros superalimentados por serem mais leves e, muitas vezes, mais baratos do que os V8 americanos com injeção mecânica e até 500 hp. Não se usavam motores rotativos (Wankel) por não serem potentes o suficiente na época. Também não se usaram motores de dois tempos pela fragilidade, muito menos motores ciclo Diesel por serem pesados demais, mas nunca por serem proibidos.

Um carro da Fórmula 5000, que durou de 1968 até 1982 nos EUA e Europa (foto: reprodução/internet)

A Fórmula 1 era bem mais flexível no início, limitando somente deslocamento: 3 litros para motores inspirantes[1] e 1,5 litro para motores insuflados. O número e a posição dos cilindros eram ao gosto do fabricante, tanto que a Ferrari usou cilindros opostos em 1964, 1965 e, posteriormente, de 1969 a 1981, quando passou aos motores insuflados V6 de 1,5 litro. A Ferrari, aliás, durante alguns anos, entre 1968 e 1981, foi a única concorrente contra os Ford-Cosworth V8 que, a exemplo do que aconteceu com os pneus, tornou-se quase um padrão na categoria. Esse padrão, aliás, foi quebrado pela Renault, com seus motores turbinados de 1,5 litro V6, tecnologia adotada pela maioria das equipes que dominaram a Fórmula 1, até os compressores serem banidos para o campeonato de 1989.

Um raio-X do Renault RS01, o primeiro Fórmula 1 com motor superalimentado, de 1977 (foto: divulgação/Renault)

Os motores foram padronizados em 3,5 litros, continuando livre o número de cilindros e sua posição até 1995. Talvez tenha sido nesse período que se popularizou, pela última vez, um salto tecnológico: os comandos variáveis introduzidos pela Honda. A partir de 1996, as limitações foram ficando mais evidentes, com todos os motores V10 de 3 litros com o coletor de admissão limitado a 77 mm de diâmetro, estrangulando o conjunto. Também sobrevieram progressivas limitações de rotação máxima, de número de motores por temporada, restringindo a inovação. Para que se tenha uma ideia, a Ferrari usou o modelo 56 de 2006 até 2013.

O banimento das válvulas rotativas, sistema desenvolvido pela Mercedes para o campeonato de 2003, foi o terceiro exemplo de uma tecnologia banida antes da estreia, seguindo os passos do Kers hidráulico, testado pela McLaren para o campeonato de 1998, e da transmissão CVT. Essas inovações poderiam ter provocado uma revolução na indústria de automóveis, e seu banimento frustrou o retorno que os fabricantes anteviram para seu investimento.

O chamado câmbio CVT Toroidal, desenvolvido pela Nissan, foi uma das tecnologias que não vingaram na Fórmula 1 (foto: divulgação/Nissan)

Vieram os motores V8 de 2,4 litros em 2006, permanecendo até 2013, alegando-se redução de custos. A partir de 2014 até hoje, todos os motores contam com seis cilindros em V de 90°, perfazendo 1,5 litro e velocidade do ar no coletor limitada a 110 km/h, com rotação máxima fixada nas 16.000 rpm. No mesmo ano, o apelo ecológico trouxe o Kers padrão com 160 cv de potência por 33 s, contra os 80 cv por 7 s vigentes desde 1996, atuando diretamente sobre o virabrequim.

O Kers atual usa dois sistemas independentes: o MGU-K (“Motor Generator Unit – Kinetic), que aproveita a energia nas frenagens, aplicando-a ao virabrequim, e o MGU-H (Motor Generator Unity – Hith), que usa o calor dos gases de escape para girar eletricamente o compressor, reduzindo o “turbo lag”. A tecnologia usada no Kers é livre, desde eletrônica como a da Magnetti Marelli, até a cinética, totalmente mecânica da Williams, passando pela capacitiva da Mercedes.

Contrariamente ao mote desta matéria, o Kers foi da F1 para as ruas, seja via GNU-H que, pela Mercedes, recebeu o nome Light Hybrid System, até o E-turbo da Audi, que copia o GNU-H. Isso, no entanto, não invalida o título porque as inovações não se deram nos motores, mas sim na inclusão de novos periféricos. A última grande melhoria, advinda da adoção dos comandos variáveis, é o sistema MultiAir. Ele não veio das competições, mas da necessidade de controlar emissões e tornar motores à combustão mais elásticos.

A tecnologia MultiAir saiu das ruas e foi para as pistas. Na foto, o motor 1.4 do Fiat 500, equipado com o sistema (foto: divulgação/Fiat)

Interessante é que carros elétricos e à combustão não podem competir entre si por determinação da FIA. Ao mesmo tempo, a Fórmula E não incentiva uma competição real por tecnologia, visto que todos os carros correm com o mesmo trem de força e de armazenagem de energia. Os tempos da expectativa pela tecnologia do próximo campeonato, realmente, ficou na História.

[1] Motores não são aspirados porque não vão parar nas narinas ou nos pulmões de ninguém. Os compressores insuflam o ar pelo coletor de admissão, daí os termos “inspirantes” e “insuflados”.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.