Energia, não haverá bala de prata

A nossa sociedade perde o norte quando se defronta com o novo. Ocorre que o novo pode não ser constituído por novidades, mas por uma alteração significativa em um sistema já conhecido, ou mesmo um novo sistema operando coisas de cujo conhecimento já éramos detentores.

Carros elétricos convivem com automóveis à combustão desde que se resolveu retirar os cavalos das carruagens, carroças, bondes e afins. Apresentaram-se dois sistemas para tração, o elétrico e o a combustão. O primeiro fracassou e o segundo prosperou. Os motivos foram muitos. Os combustíveis mantinham a densidade energética da primeira à última gota, enquanto as baterias iam perdendo potência com a descarga.

Desde os anos 1900 já tínhamos carros elétricos no mundo (Foto: Ford/divulgação)

As baterias chumbo-ácidas, as únicas viáveis industrialmente, davam 60 Wh/kg (0,06 kWh/kg), enquanto os hidrocarbonetos algo como 12 kWh/kg, duzentas vezes mais. Por último, mas não menos importante, a eletricidade vinha dos hidrocarbonetos, ou seja, compartilhava com os combustíveis as linhas de abastecimento.

Na verdade, as linhas de abastecimento tiveram sua evolução muito mais ligada ao uso do petróleo para gerar eletricidade do que devida à introdução do automóvel. Sob o ponto de vista puramente sistêmico, pode-se dizer que a sociedade energizou-se a partir dos mesmos insumos e do mesmo processo, porém, com produtos diferentes.

A bem da verdade é que a adoção dos combustíveis fósseis ao invés da eletricidade se deu pelo uso abrangente do petróleo (Foto: reprodução/Freepik)

A hierarquia de distribuição de petróleo começou a configurar-se como conhecemos hoje a partir da opção que JP Morgan fez ao financiar oleodutos para Rockfeller, traindo os acordos anteriores com Vanderbilt. Este último estava monopolizando o frete por trens com vagões-tanque entre os poços e as refinarias. Do lado da Europa, a contribuição foi quando a Shell começou a usar petroleiros no lugar do transporte em barris, cujo volume é a unidade de medida até hoje.

Assim, a estrutura composta por petroleiros, oleodutos e carros-tanque, sejam ferroviários, sejam rodoviários é que garantiu o peso do petróleo na energização da sociedade. Casos como nossas hidroelétricas, geração eólica e fotovoltaica ainda são exceção. A matriz energética mundial continua e continuará vindo do petróleo por muitos anos.

O petróleo continua fornecendo a matriz energética ao mundo quase que inteiro (Foto: Petrobrás/divulgação)

Isso não significa que jamais mudará. Quer apenas dizer que a mudança será mais lenta do que nossas expectativas. Será preciso criar uma nova hierarquia de distribuição de energia. Nela, entrarão coisas com que mal sonhamos hoje.

Tomemos como exemplo as baterias nucleares, como as que se usam para marca-passos cardíacos, relógios de precisão e outros instrumentos: para sistemas motrizes, elas não servem por dois motivos, um deles é o risco de acidentes nucleares ligados ao trânsito, outro é a baixíssima densidade energética, próxima dos 150 Wh/kg (0,15 kWh/kg), a metade da densidade energética das baterias de íons de lítio.

Baterias nucleares não servem para os carros, e o motivo não é só os perigos de explosões em acidentes (Foto: reprodução/Freepik)

Essa é uma informação espantosa porque a densidade do urânio 238 é quase três milhões de vezes maior do que a de uma bateria de íons de lítio. Ocorre que a blindagem contra a radiação é tão grande que o núcleo de material radiativo torna-se ínfimo em relação ao invólucro. Só que isso tem seu uso e já se estão testando baterias nucleares a partir do resíduo das usinas, pois elas duram mais de trinta anos sem perder capacidade significativa e sem necessitar de recarga.

Já em eletropostos instalados em lugares com pouco ou nenhum acesso a energia elétrica, as baterias nucleares podem ser úteis (Foto: Tesla/divulgação)

Ora, se elas não têm lugar nos veículos e são tão pesadas, onde é que elas seriam úteis? Em postos de recarga, especialmente em locais remotos, onde a rede de transmissão não alcance ou não tenha capacidade de fornecimento suficiente. Enquanto isso, há linhas de pesquisas com íons de sódio, de boro e por deposição de alumínio em polímeros, além do emprego de grafeno e nióbio como adjuvantes em baterias já desenvolvidas.

Na verdade, nada disso importa e tudo isso importa. Nada disso importa porque não haverá um só tipo de baterias a se usar na eletricidade como solução para a mobilidade humana. Haverá uma hierarquia como a que se encontra para o petróleo, no que se convencionou chamar “do poço ao posto”. Será uma cadeia formada por uma diversidade de meios de geração, aliada a um intrincado sistema de armazenagem. Que nome isso terá, ainda não se sabe.

Nada disso importa porque haverá diferentes tipos de baterias para se usar na mobilidade urbana. Mas… (Foto: Audi/divulgação)

Tudo isso importa porque o grande salto é deixar-se de ver a eletricidade como algo difícil, quando não impossível de armazenar. A ideia do acúmulo para uso posterior, que sempre foi relegado a usos específicos, vai se tornar a tônica da energização de uma sociedade que está por vir.

Assim como hoje se distingue a capacidade de produção do volume passível de armazenamento de petróleo, passaremos a perguntar, além de quantos gWh/ano um país é capaz de gerar, nações também serão ranqueadas pelo tanto em gWh que podem armazenar em sua hierarquia de acumuladores. De uma coisa podemos estar certos: devemos também isso aos automóveis.

O maior problema, no final, nem será produzir eletricidade, mas sim armazená-la (Foto: reprodução/canalsolar.com.br)
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.