Carros depenados, quando quem perde ganha: modelos que deixaram conteúdo para trás

 *Com colaboração de Lucca Mendonça

Lá pelos anos 1960, quando a demonstração de sucesso era ter um carro do ano parado à porta, os anos dourados que sucederam a II Guerra chegaram ao fim. É que o acordo de Bretton Woods, que determinava que o dólar seria a única moeda conversível em ouro, tornou-se insustentável. As demais moedas desvalorizaram-se perante ele e a explosão de consumo de produtos americanos minguou.

Ao mesmo tempo, os japoneses aproveitaram corretamente o fato de terem fronteira com a União Soviética, o que provocava um subsídio de importação por parte dos Estados Unidos, visando impedir que o país do Sol Nascente caísse nas mãos dos comunistas.

Embora a importação de carros japoneses ainda não fosse massiva, os americanos tiveram seu poder de compra restrito pela porção destinada aos produtos importados. Isso e mais alguns fatores macroeconômicos domésticos induziram a uma recessão, cujo resultado foi encherem-se os pátios de todas as indústrias de automóveis.

Com a recessão da época, os pátios das fabricantes se encheram. Uma das formas de se resolver foi depenando novos modelos (Foto: reprodução/Stringer Brazil)

Os economistas perguntaram-se por que a indústria não baixava preços para esvaziar os estoques, ao que os profissionais de marketing respondiam que seria uma política suicida. É que se baixassem seus preços, o consumidor que tinha comprado na alta iria se sentir enganado: “Então não valia o que paguei?”.

Para recompor as margens apesar da queda das vendas, a indústria começou a depenar seus carros. Começou com o sumiço dos rabos de peixe, os simulacros de aviões sobre o capô, o excesso de frisos e, em nome de um design mais discreto, lá se foram os adereços mais dispensáveis. Também foi por essa época que inventaram os “muscle cars” que, no fundo, eram carros pelados com grandes motores, cujo apelo era o desempenho.

Daquela época vieram os Muscle Cars, que eram carros grandes, depenados e com motores enormes. Hoje a história é diferente (Foto: Ford/divulgação)

Nasceu aí uma prática que está profundamente enraizada na indústria de automóveis: depenar o carro ao mesmo tempo em que se vende a ideia de novo modelo. Isso acontece, normalmente, em cinco ocasiões especiais: por corte de custos, por força maior (legal ou problemas com fornecedores, por exemplo), quando a linha está por ser interrompida, quando existe uma possível concorrência interna com outro modelo mais vendável e rentável (canibalismo), ou quando as vendas estão em baixa.

Para exemplificar melhor esse tema, aí vão alguns exemplos práticos de modelos “depenados” pelas fabricantes de automóveis, divididos por marcas:

Fiat:

Argo e Cronos: airbags laterais, disponíveis opcionalmente nas versões mais caras, deixaram de ser oferecidos no final de 2021. O motivo foi a saída de linha, justamente, das tais versões mais caras.

Toro: na linha 2022, a picape monobloco perdeu o Wi-Fi integrado, que era de série nas configurações topo de linha. O item passou a ser opcional. Alega-se que a crise de semicondutores motivou a perda.

Ford

Ka e Ka Sedan: reestilizados em 2018, os populares da Ford estrearam os airbags de cortina no segmento. Já na linha 2020, o equipamento, de série nas versões mais caras, deixou de ser oferecido. Aqui, o motivo foi o famoso corte de custos.

Ranger Black: na linha 2023, a versão urbana da picape da Ford deixou de ser equipada com o painel de instrumentos com duas telas digitais, o mesmo das versões superiores. Da mesma forma, seu ar-condicionado digital foi trocado por um sistema analógico. Outro item que saiu de cena foi a multimídia Sync 3, dando lugar à outra mais modesta. O lançamento da versão FX4, que ficaria logo acima da Black, motivou a simplificação para evitar canibalismo.

Volkswagen:

Golf: hatch médio da VW trocou o freio de estacionamento eletromecânico com função Auto Hold pela alavanca manual na linha 2015, mesma ocasião que passou a vir importado do México. Quando se tornou nacional, na linha 2016, ficaram para trás ainda o sistema de suspensões independentes nas quatro rodas (tornou-se eixo de torção na traseira), além do câmbio automatizado de dupla embreagem, que foi trocado pelo automático convencional de seis velocidades. Nas duas ocasiões, o corte de custos falou mais alto.

Fox: na linha 2019, lançada em meados de 2018, o modelo deixou de lado o motor 1.6 16V de até 120 cv, completamente substituído pelo 1.6 8V de até 104 cv. O motivo foi a redução de versões (restaram apenas duas), novamente para evitar brigas internas com o então Novo Polo.

Chevrolet:

Tracker: além da transmissão manual de seis marchas, aposentada na linha 2022 pelos baixos números de vendas da versão em que ela estava presente, o SUV compacto da GM deixou itens importantes na linha 2023, mas agora por conta da crise de semicondutores: Wi-Fi, Android Auto e até Bluetooth não estão mais presentes na central multimídia do modelo. Tais equipamentos poderão ser adquiridos futuramente, mesmo nos carros usados.

Equinox: SUV médio deixou de ser oferecido com motor 2.0 turbo e transmissão automática de nove velocidades, isso em âmbito mundial. As baixas vendas do modelo com tal conjunto propulsor justificaram a decisão. No lugar, o 1.5 turbo aliado à caixa automática de seis velocidades, que antes era item das versões mais baratas, passou a mover toda sua linha.

Jeep

Renegade: as leis de emissões tiraram de linha o motor turbodiesel de 2.0 litros na gama do SUV compacto da Jeep. Assumiu a posição dele o 1.3 turboflex, único oferecido em todas as configurações do modelo a partir da linha 2023. Por outro lado, a transmissão automática de nove velocidades (ZF), tração 4×4 com reduzida e seletor de tipos de terreno permaneceram em versões com apelo mais fora-de-estrada.

Jeep Renegade (Foto: Lucca Mendonça)

Honda

Fit: o monovolume da Honda trocou os freios traseiros a disco sólido pelo conjunto de tambores, mais simples e menos eficientes, quando ganhou sua terceira geração em 2014. Assim ele permaneceu até 2021, quando se despediu do mercado nacional. Mais uma vez, redução de gastos na produção.

HR-V: com a chegada da segunda geração do SUV compacto da Honda na linha 2023, um equipamento deixado para trás foi o teto-solar, que inclusive era panorâmico nos modelos anteriores. Agora, não é mais possível adquirir o modelo com tal item. Embora declare que essa geração, mundo afora, não disponha de teto-solar (apenas o vidro panorâmico fixo), a decisão pareceu muito mais um corte de custos.

Toyota

Corolla: recentemente, no último trimestre de 2021, o sedan médio badalado da fabricante japonesa perdeu funcionalidades como Android Auto e Apple CarPlay. Isso por conta da adoção de uma central multimídia paralela, com menos recursos, ao invés da original Toyota. A falta de componentes para produzir o equipamento resultou na decisão crítica.

Hilux: na linha 2022, a picape deixou de lado as versões com motor flex, um 2.7 de quatro cilindros em linha. Agora, todas são movidas a diesel, com um 2.8 turbo. As baixas vendas do modelo nas versões flex foram a causa da simplificação.

Audi

A3: além de abandonar, assim como o VW Golf, as suspensões independentes nas quatro rodas assim que se tornou nacional em 2015 (ambos, inclusive, saíam da mesma fábrica), o modelo de entrada da Audi deixou de oferecer o piloto automático adaptativo (ACC) na linha 2017. A redução de custos falou mais alto no primeiro caso, enquanto no segundo, as vendas em baixa dos carros com tal equipamento (que era opcional), motivou a decisão.

Audi A3 Sedan (Foto: Audi/divulgação)
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.