Tarifa-zero do transporte público e o modelo de mobilidade urbana (Parte I)
Foto de capa: Fernando Frazão/Agência Brasil
Quando minha sobrinha veio do Rio de Janeiro para cursar a USP, ela me disse “Em São Paulo, o pobre não tem direito de se divertir”. Ela tem razão. Aos sábados, os ônibus em circulação são reduzidos pela metade e, aos domingos e feriados, seu número cai para um quarto, sendo que algumas linhas sequer funcionam. Restava ao morador da periferia ir ao bar mais próximo e encher a cara de cachaça, transformando a vida da família num inferno.
“Restava”, porque há a alternativa de ir ao culto, facilitando a doutrinação política dos fiéis. Passear? Jamais! Praticar esportes? Só se ainda restar um campinho na várzea, o que se está tornando tão raro que o próprio futebol está em decadência no país. Para um morador do Grajaú cobrir os 40 km que o separam de Guarulhos, onde – suponhamos – vive sua mãe, é uma saga de, pelo menos cinco horas num domingo.
A ideia de que somente trabalhadores, que têm vale-transporte; estudantes, que pagam meia, e idosos, que não pagam a passagem, tomarem ônibus, esconde a terrível realidade de que o transporte público não serve ao povo, mas aos patrões, na medida em que o vale garante que estes não faltem por falta de verba para se locomover.
Depois de o município de Santo André-SP anunciar a tarifa-zero para o transporte público, Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, acenou com a mesma possibilidade. Provavelmente, seus motivos sejam eleitoreiros, visto que ele corre pela reeleição em 2024. Possível, indubitavelmente, isso é, mas será que é viável? A despeito da vontade de este autor ver o transporte público gratuito para garantir o direito de ir e vir, há que se considerarem as questões técnicas. Elas são decorrentes do modelo contratado por vinte anos na administração de Dória. Entre os técnicos em mobilidade urbana, a licitação de 2018 foi apelidada de recontratação, visto que, essencialmente, nada mudou em relação ao contrato anterior.
Aliás, a vigência do anterior terminara em 2012, dez anos depois de Marta Suplicy ter implantado o Bilhete Único. Como a intenção de Haddad era de impedir a formação de cartel, municipalizando as garagens, as negociações foram se prorrogando e o sistema funcionando precariamente sob infinitas liminares que, inclusive, mantinham carros antediluvianos rodando impunemente. A epopeia só terminou com João Dória num contrato em que qualquer coisa poderia ser feita, desde que não se mudasse nada.
As linhas permaneceram as mesmas, os carros inalterados e só as empresas mudaram de nome e mesclaram-se persistindo o mesmo cartel.
O pagamento, que fora alterado para quilômetro rodado nos tempos da Martha (2001-2004), privilegiando as baldeações para otimizar o trajeto, voltou a ser pago por passageiro na gestão de José Serra (2005-2009). Voltou-se a induzir a superlotação para maximizar a lucratividade. Em suma, o modelo logístico continuou tão irracional quanto em décadas passadas, com carros superdimensionados para diluir os custos com a tripulação, cujas horas-extras excedem a jornada normal. As linhas continuaram verdadeiros caminhos de rato para maximizar o IPK (Índice de Passageiros por quilômetro).
É que o passageiro que toma um ônibus para ir de final a final paga o mesmo que outro que o toma para andar dois quarteirões, até o próximo ponto. Claro que o bilhete único mescla pagamento por passageiro com uma remuneração por quilômetro rodado e quem paga a diferença é a prefeitura.
Foi o fato de o transporte púbico não ser gratuito que ensejou as primeiras manifestações de rua em 2013 em São Paulo. Recordemos que o chamariz foi a proposta de aumento da passagem de R$3,00 para R$3,20. A proposta de reajuste motivou a convocação para os black blocs, organizados por movimentos como MBL e Endireita Brasil, irem às ruas num movimento mais tarde chamado de “ucranização”. O bordão seguinte era “Não é pelos vinte centavos”. Se o transporte público fosse gratuito, os mentores da extrema direita teriam de encontrar outro motivo para levar o povo às ruas numa clara manipulação política com endereço certo.
A manutenção da cobrança pelo transporte público, bem como da escassez em fins de semana e feriados, tem motivadores políticos que excedem os interesses dos comerciantes. Eles vão da proliferação dos cultos à manutenção do poder do crime organizado que, por disfarce de benemerência, fornece transporte alternativo para os eventos de seu interesse. A tão sonhada tarifa-zero deve ser precedida por mudanças no modelo logístico que serão discutidas no próximo capítulo.
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