Indústria de automóveis: sem distribuição de renda, não dá


Foto de capa: reprodução/autoentusiastas.com.br
Joãozinho Trinta, que foi um dos maiores carnavalescos da história do Brasil, dizia que “Pobre gosta de luxo, quem não gosta é intelectual”. Ele tinha toda a razão. Logo depois de casado, eu estava lavando meu carro novo no jardim da casa que eu tinha acabado de comprar. Foi quando uma criança carente pediu-me um trocado. Eu disse que não tinha e voltei à minha tarefa.
Naquele tempo, eu era formado em economia, estava cursando o mestrado, mas ainda não me transformara em economista. Um economista é aquele que sobe ao terraço do mais alto prédio da cidade, olha para baixo e entende como a sociedade funciona.

Se fosse hoje, eu me poria no lugar daquele menino e veria a distância abissal que existia entre ele e mim. Um carro novo era algo tão distante para ele quanto um Porsche 918 é para mim hoje, só que eu não tinha essa consciência. Tenho defendido – e ainda defendo – que se constitua um CCPV (comando de Caça ao Pau Velho). Por mais zombeteiro que possa parecer, isso já foi feito em lugares como a França.
Por lá, em dado momento entre os anos 1950 e 1960, os carros velhos em circulação cresceram em número a ponto de pôr em risco o trânsito no país inteiro. Em meado dos anos 1980, o Estado comprou esses carros por um preço fixo para os destruir. Esse valor podia ser dado como entrada na compra de um carro popular novo. Enquanto a venda do material para a própria indústria minimizava o gasto público com a renovação da frota.

Daí para a frente, o imposto francês equivalente ao IPVA passou a ser função direta da idade do veículo, além de as vistorias serem mais frequentes e rigorosas.
Aqui é justamente o contrário. No Brasil, o imposto decresce com a idade, até o veículo ficar isento. Não ter de pagar IPVA faz com que a procura por esses carros cresça sem que o consumidor tenha como mantê-los. O resultado é que sejam abandonados e, especialmente os “lixos de rico” ou “restos de rico”, fiquem espalhados pelas ruas em torno das favelas e nos bairros periféricos, no mínimo, servindo como criatório para o mosquito da dengue.

Tornar o imposto progressivo poderia fazer com que o carro fosse a leilão, mesmo que a CF88 (Constituição Federal de 1988) não permita que o imposto seja confiscatório, ou seja, a expropriação automática do bem privado é inconstitucional. Fazer leilão para que os paus velhos sejam adquiridos por empresas de reciclagem é muito trabalhoso e lento.
O ideal seria que o estado adquirisse todos os carros a partir de uma certa idade, fazendo uma licitação para que uma ou mais empresas de reciclagem assumam a tarefa de os desmanchar e entregar como matéria prima para a indústria de automóveis. Mas onde é que isso pega?

Há dois obstáculos para que isso dê certo no Brasil. O primeiro é concernente ao conceito de propriedade privada: o cidadão tem (e deve continuar tendo) o direito de possuir um carro antigo, seja de que ano for, ao passo que circular com ele é outra questão, haja vista que o sistema viário é púbico e cabe ao mesmo Estado, que garante a propriedade privada, regulamentar o uso das vias públicas. O segundo tem a ver com a distribuição de renda, pois a transação, por compulsória que seja, induz a um gasto que pode estar fora do alcance do indivíduo. Ele pode simplesmente não ter recursos para, usando a indenização, comprar um carro novo.
É pelos dois motivos acima que a distribuição de renda torna-se tão importante. Sem isso em mente, não há como a indústria prosperar. Mais uma vez, parafraseando Henry Ford acerca do Modelo T, que deveria ser acessível a todos os seus operários: “sem distribuir renda, não há quem compre e, não havendo mercado, para-se de produzir”.

Basear indústria na exportação é uma ilusão, porque o mundo industrializou-se e a concorrência joga as margens cada vez mais para baixo. Mesmo os chineses já entenderam isso. Com os trilhões de dólares amealhados em reservas, não há como impedir que o Renminbi valorize-se perante as moedas mais estáveis do mundo, tornando-se plenamente conversível.
Assim, passa a ser mais interessante investir na fabricação em mercados de destino, daí a invasão de empresas como a GWM (Great Wall Motors) ou BYD (Build Yours Dreams). Trazer novos fabricantes é fácil. Difícil é mantê-los aqui sem uma política de distribuição de renda que lhes garanta o mercado.