O Gordini que era tão doido que deixou o guarda sem palavras
Esse fato notório ocorreu lá pela metade dos anos 70. Os protagonistas desse episódio foram um Renault Gordini ano 1962 na cor verde-claro ou, quem sabe, azul-claro, não me lembro mais, e de outro lado um grande amigo meu que não vejo há décadas, o Antônio João Gonçalves, ou simplesmente “Português”, seu apelido. Nos conhecemos fazendo um curso de mecânico de automóvel na escola Senai do Ipiranga, em São Paulo. De boa índole, o Português se esmerava e estudava para entender em detalhes toda a mecânica de um automóvel.
Na escola nos conhecemos e logo ficamos muito amigos, graças principalmente ao fato de gostarmos muito de carro e de mecânica. Lutando na vida, sempre com empregos simples e de baixa remuneração, meu amigo acabou comprando um Gordini 1962. Já nessa época, era um carro de 15 anos de uso, bem sambado. Mas eu e o Português vivíamos desmontando e montando o pobre e velho Gordini, consertando nele tudo o que o tempo havia desgastado.
Mas, na época, nós éramos metidos: não bastava consertar, a gente queria modificar e envenenar o carrinho para que ele andasse mais. O Português tinha um tino admirável para procurar raridades nos ferros-velhos de São Paulo. Encontrava pistões maiores, carburador de corpo duplo, comando de válvulas especial, coletor de escapamento dimensionado e por aí vai.
Nos fins de semana, pegávamos essas tranqueiras e metíamos tudo dentro do motor do Gordini e, claro, a gente não tinha dinheiro para peças novas. Por isso, juntas, velas e os demais componentes do motor eram usados, de segunda mão: a separação das peças boas e ruins era feita em latas ou caixas de papelão.
Rápido feito notícia ruim!
Na realidade, não sei nem como aquilo funcionava. Mas a verdade é que funcionava, e muito bem, pois o tal Gordini andava rápido feito notícia ruim. Um belo dia, Português estava experimentando um desses motores-monstro que havíamos feito literalmente nas coxas: colocávamos o minúsculo motor entre as pernas e íamos montando até que ficasse pronto para ser colocado no carro.
Português morava perto da Via Anchieta, rodovia que liga a cidade de São Paulo à Santos, no litoral paulista. Logo no início da Via Anchieta, existe um posto da polícia rodoviária estadual e, depois disso, a rodovia tem uma bela descida. O Português passou pelo posto de vistoria da polícia e, logo depois, apertou o pé até o fundo do acelerador.
O velho Gordini chegou ao final da descida a mais de 110 km/h, um feito e tanto considerando o estado do carro e o curto espaço do tal declive. O que o meu grande amigo lusitano não sabia é que havia um radar controlando a velocidade dos apressadinhos lá embaixo, no final. O limite naquele trecho era de 80 km/h, e nosso amigo passou a mais de 110 km/h. O guarda do radar, pelo rádio, avisou o comando a frente que, imediatamente, parou o Português. O guarda rodoviário, educadamente, pediu sua carteira de motorista e os documentos do combalido Gordini, como é de praxe.
Sem documentos
Português entregou sua habilitação e, do minúsculo porta-luvas, começou a tirar um monte de papéis velhos, daqueles amarelados e meio rasgados pela idade. A cada papel que ele abria no colo, olhava para ver se era aquilo que o guarda estava pedindo, ou seja, o documento do carro. O oficial rodoviário, ainda de maneira polida e educada, foi logo dizendo: “Pelo jeito, o senhor não tem documentos desse carro. Além disso, eu estou vendo que os pneus estão carecas e o senhor passou pelo radar em excesso de velocidade. Gostaria de saber o seguinte: se eu apreender esse carro, o senhor vai retirá-lo no pátio e pagar as multas?”
Prontamente meu amigo Português fez o sinal negativo com a cabeça. E o guarda rodoviário continuou: “Então este será mais um carro apodrecendo no pátio e ocupando lugar e, pelo que estou vendo, ele já está bem podre e não vai durar muito tempo por lá. Ou seja, se eu apreender isso aqui, que é o que deveria ser feito, vou arrumar mais uma dor de cabeça, estou correto?” Português novamente fez sinal afirmativo com a cabeça e o educado guarda, já meio sem paciência, disse: “Tome a sua habilitação e leve esse troço daqui, porque de dor de cabeça eu já estou cheio! Vá devagar e respeite os limites de velocidade, e espero não encontrar mais o senhor e essa porcaria andando na estrada!”
Português, mais do que depressa, ligou o velho Gordini, que também estava com medo de terminar os seus dias com outros carros apodrecendo em um pátio e pegou de pronto, e o português se mandou daquela situação de quase degola. Por pouco não voltou a pé para casa.
Só para terminar, o Gordini não foi muito adiante: na própria Anchieta, o motorzinho mexido cuspiu uma biela, abrindo um buraco no bloco do motor. Sabe como o criativo Português arrumou isso? Foi andando até uma farmácia e comprou bastante gaze e esparadrapos. Pelo buraco aberto, tirou a biela quebrada, fechou aquele rombo com os materiais que havia comprado, colocou óleo no cárter e voltou para casa com apenas três cilindros.
E não é que o danado chegou mesmo no seu destino? Demorando muito, é claro…