Onde morrem os ônibus?

Foto de capa: Reprodução/saopauloantiga.com.br

Todos os dias ouvimos falar em mobilidade urbana. Antes, Metrô e ônibus eram coisas distintas e trens nem eram citados. Havia uma noção de integração, porém, só da saída do metrô e o próximo ônibus. A coisa começou a mudar quando, no governo de Marta Suplicy, criou-se o Bilhete Único, retirando o transporte clandestino das mãos de facções criminosas. A partir do momento em que os ônibus ficaram integrados entre si, o passo seguinte foi integrar o Metrô e os trens urbanos.

Inesperada foi a chegada do Uber. Criou-se uma situação intermediária entre o transporte coletivo e o táxi, haja vista que Uber não pode, por exemplo, alterar o destino nem ficar esperando. A alteração aprofundou-se com os aplicativos oferecendo transporte compartilhado, com computadores otimizando o trajeto entre os passageiros e deixando-os exatamente no destino, não próximo a ele.

Com a chegada do Uber, a vida das empresas de ônibus ficou mais complicada (Foto: Scott Olson/Getty Images)

Os empresários sempre preferiram o pagamento por passageiro porque minimiza os investimentos nos veículos, ao mesmo tempo em que as linhas passam a ser verdadeiros caminhos de rato, jamais o trajeto mais curto, visto que o faturamento é função da rotatividade de passageiros, não em seu número estático. Assim, por pressão dos empresários, na troca de prefeitos, de 2004 para 2005, a prefeitura de São Paulo voltou a pagar por passageiros, mantendo o Bilhete Único. Com isso, a frota diminuiu aproximadamente 15% e os empresários livraram-se dos carros mais novos para fazer caixa.

Não contavam os empresários com que surgiria um concorrente e que não mais se falaria em transporte coletivo, porém, em mobilidade urbana. Nesse modelo, as prefeituras passam de uma política para cada meio de transporte para outra abrangente, que obriga a integração intermodal. O resultado é que agora os mesmos empresários, que sempre rechaçaram o pagamento por quilômetro rodado, clamam pelo fim da remuneração por passageiro transportado.

O anuário da Associação Nacional dos Transportadores Urbanos (ANTU) atribui esse clamor à consistente queda no IPK (índice de passageiros por quilômetro). Segundo a série temporal constante naquele documento, a partir de 2013, esse índice, que sempre girou em torno de 2,7, caiu para 1,1, independentemente da pandemia, inviabilizando o modelo de negócio. Ao mesmo tempo, os custos com combustível elevaram-se sobremaneira, obrigando a troca dos carros no prazo estipulado pelo convênio.

O índice de passageiros por quilômetro caiu de 2,7 para 1,1 desde 2013 (Foto: Léu Britto/Agência Mural)

Até então, a opção era por “enrolar” as licitações o quanto possível, mantendo carros rodando fora da idade via sucessivas liminares. Até mesmo a prática de reencarroçar os modelos menores, que costumam ter carroceria sobre chassis, deixou de ser viável economicamente. Não tem conversa: a solução são carros novos, preferencialmente elétricos, aliado ao pagamento por quilômetro rodado.

Os modelos menores, com dois eixos e motor dianteiro, têm seu mercado garantido depois de seu prazo vencer no transporte público. Eles são usados no transporte alternativo em que as regras são mais permissivas. Hora destinam-se ao transporte escolar, hora ao de trabalhadores rurais. Um veículo de 8,00 m, com dez anos de uso e revisado, vale algo como R$56.000,00, surpreendentemente mais do dobro de um articulado de até 18,00 m de comprimento.

Os ônibus maiores valem praticamente a metade dos menores, com eixo duplo e motor dianteiro. O motivo é simples: o uso de segunda mão desses veículos maiores é proibitivo (Foto: DIvulgação/Volvo Bus)

Isso acontece porque a tecnologia empregada na suspensão com joelho, no piso baixo, bem como nas articulações, impede seu uso alternativo, o que é agravado pelo consumo em torno de 0,8 km/l. Trata-se, portanto, de inviabilidade técnica e econômica que simplesmente aniquilam seu mercado, empurrando-os para o desmanche.

No processo, aproveitam-se somente o trem de força, rodas e pneus, estes últimos para reemborrachamento (ou recapagem, como o processo é mais conhecido), se em condições de carcaça. Além disso, transmissões podem ser recondicionadas e voltarem a servir carros mais novos, enquanto motores têm vários outros usos, inclusive estacionários, seja para grupos geradores, ou para bombas de irrigação.

O aço e o alumínio são vendidos à parte, depois de picados para otimizar o transporte e o uso como nos fornos para fusão. Vidros, que são o material mais reciclável do planeta, são moídos e entregues para virarem até copos. Fios e cabos são vendidos como sucata para empresas especializadas em retirar a capa e moer o cobre. Finalmente, a fibra de vidro é moída para ser carga em peças de plástico. Nem mesmo os bancos costumam ser aproveitados como tal.

Quando se diz que aviões velhos viram panela de pressão, o mesmo se pode dizer dos ônibus urbanos de maior porte: Viram panelas de pressão, copos de vidro, peças de plástico, e muito mais.

Depois de sucateados, os ônibus viram panela de pressão, copos, peças plásticas, e por aí vai (Foto: reprodução/viatrolebus.com.br)
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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.