Uber, escravidão ou alforria?
Foto de capa: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Em 2017, publiquei no então BestCar WebSite, hoje Autolivraria, uma matéria que discutia o conflito entre motoristas da Uber e taxistas. Quem diria que o tema viria à baila de forma tão inesperada.
O assassinato de um executivo do ramo de saúde privada nos Estados Unidos mostra que a forma como as empresas atuam no mercado pode ensejar episódios de violência sob o pretexto de as empresas não agirem com humanidade perante seus clientes. Observe-se que, nos Estados Unidos, a taxa de desemprego está em alta, um dos motivos que levaram ao retorno de Trump. Mesmo assim, a reação ao assassinato foi supreendentemente positiva, havendo nas redes até quem considerasse o assassino como um herói, como um Zorro moderno.
Foi um sinal de revolta contra um profissional cuja função é não prestar o serviço para o qual foi pago. Situações extremas à parte, o trabalhador está ficando mais seletivo, tanto na escolha de onde vai trabalhar quanto com o que pretende sustentar a si e sua família. Não se trata de fenômeno local, como se verá a seguir, mas de saber se a uberização do trabalho é escravidão ou alforria.
Dia 10 de dezembro de 2024, numa reunião do NAPP (Núcleo de Apoio a Políticas Públicas) da Fundação Perseu Abramo, veiculou-se um dado interessante, mesmo que não exatamente inédito. As demissões voluntárias, segundo o Caged, vêm acelerando desde que a economia voltou a um nível aceitável de emprego. De uma certa forma, esse fenômeno é natural, pois é de se esperar que, quanto maior o nível de emprego, maior seja a mobilidade em uma economia capitalista.
A novidade reside nos motivos que levam ao pedido de demissão. Conseguir um emprego mais bem remunerado mostra que a demissão voluntária não afetou o nível de emprego, só denotou uma melhora no mercado de trabalho. Os dois outros motivos é que impressionam: a expectativa de conseguir emprego melhor e não concordar com os procedimentos do emprego que se está abandonando.
O segundo motivo denota um senso de a segurança não ser prioridade máxima como sempre foi, daí os trabalhadores não recorrerem aos sindicatos como sempre fizeram. Estes, em certa monta, deixaram de ser a única forma de zelar pelos interesses do trabalhador, inclusive, evitar demissões, daí a sindicalização estar no menor nível da História apesar do otimismo no mercado de trabalho. O terceiro motivo mostra que o episódio de New York extrapola as fronteiras e atinge, como esta ou aquela interpretação, o resto do mundo, inclusive o Brasil.
Os motivos que se têm veiculado, especialmente os de cunho sociológico, ao ver deste autor, não são suficientes para explicar tamanha alteração de comportamento. Não basta querer passar mais tempo com a família. Dar mais valor ao usar do que ao ter também não é explicação suficiente para fazer o empregado abrir mão da segurança do salário no fim do mês e só sair de um emprego quando o próximo estiver contratado.
É preciso que haja um agente capaz de alterar significativamente as relações de trabalho, alteração essa que começa pela redução da dependência de um emprego para manter as contas minimamente pagas, mais que isso, sem ter de recorrer ao salário-desemprego. Mas, o que aconteceu de tão novo nos últimos duzentos anos, desde a industrialização do Ocidente?
Há quem diga que a liberdade está correlacionada com a facilidade com que a pessoa pode “ligar o foda-se”. O fato é que o pressionar o botão do “foda-se” está se tornando mais frequente e isso parece se dever à segurança proporcionada pela Uber e congêneres.
É uma visão diametralmente oposta à usual, posto que a uberização tem sido vista como sinônimo de escravidão, de exploração do trabalhador. É que a Uber foi criada na esteira da crise de 2008, quando o nível de emprego estava alarmante nos Estados Unidos, mazela que atingiu o Brasil a partir do golpe de 2016, quando o desemprego tornou-se desesperador. Eram tempos em que ligar o “foda-se” era impensável, justificando a imagem deletéria do sistema de contratação.
Para entender isso, é preciso compreender que a Uber, numa situação normal de emprego, não presta serviço à população, mas aos que estão fora do mercado de trabalho. Ou por estarem desempregados, ou por não se enquadrarem. Como dizia Karl Marx, são “lümpen”, ou “os que escolheram ou foram levados a viver de bico”. Só que o nível de emprego voltou ao aceitável e o papel de Uber e congêneres passou a ser o de colchão para quem decide mudar de emprego, ou seja, deu ao trabalhador o poder de ligar o tal do “foda-se” mais facilmente.
É que, na pior das hipóteses, põe-se o carro na rua e, executando um trabalho que não requer prática ou habilidade, continua-se vivendo. Assim, reduziu-se a ascendência do empregador sobre o empregado. Por plausível que a hipótese de a uberização ser libertadora em muitos aspectos possa parecer, não parece eliminar a luta de classes, apenas a torna mais civilizada.
A uberização pode, de um certo modo, ser um substituto para o salário-mínimo, ou melhor, para o salário-desemprego com a vantagem de não ter prazo e não exigir comprovação alguma. Tudo passa a ser uma questão de valor. Se o trabalhador receber R$20.000,00 ao mês, estará muito mais propenso a suportar desaforos do patrão. Já um outro que ganhe R$7.000,00, estará muito mais propenso a ligar o botão do “foda-se” e tornar-se Uber por R$6.000,00 como rendimento mensal, por exemplo.
Não nos podemos esquecer de que ter derrubado o sistema de permissão para taxistas e alvarás para o veículo, que tinha virado privilégio, ajudou muito a metamorfose da Uber, que não passou de sapo a príncipe, mas de escravidão à alforria.
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