Sobre Track Days e preparação de motores em carros de rua

Foto de capa: Rafael Micheski/Revista Track Day

Vou te convidar para um resumo bem enxuto sobre a evolução na preparação de motores nas últimas décadas. Óbvio que a complexidade do tema e as particularidades de cada veículo vão deixar muitas minúcias de fora. Mas a ideia não é escrever um livro. Só uma coluna.  

Não dá para iniciar um texto sobre preparação de motores sem se desvincular das questões relacionadas às leis de trânsito. Eu gosto de carros. Gosto muito, aliás. Gosto de acelerar, já me aventurei em corridas e não serei hipócrita em negar que a alta performance em um automóvel é algo que me fascina. Mas jamais isso foi, é ou será mais importante do que zelar pela segurança, principalmente a de quem estiver comigo no carro, dos demais motoristas e pedestres e a minha própria. Isso é inegociável.  

Já me aventurei bastante no ramo das corridas, chegando a correr, inclusive, de Fiat Marea/Brava junto de outros amigos jornalistas. No registro, estou na ponta da esquerda, olhando para a foto (Foto: acervo pessoal de Douglas Mendonça)

Por isso que a invenção do século chama-se Track Day. Recente no Brasil – os primeiros datam do início dos anos 2000 –, o Track Day celebra a retirada de boa parte dos carros preparados de demonstrações de performance nas ruas, colocando-os em pistas fechadas. Alguns deles continuam rodando por aí, mas a maioria dos usuários parece ter entendido que as pistas são o cenário adequado.  

O Track Day é prática recente no Brasil, mas promete tirar os “rachadores” das ruas, os colocando num autódromo próprio para competições (Foto: Edson Guerra)

Claro que ainda existem babacas que fazem racha (ou “pega”) nas vias públicas – se bem que isso ocorre também com quem tem carro original, diga-se. A idiotice tem sido mitigada, mas é difícil eliminá-la. No passado, entretanto, era muito pior, quando se preparavam Fusca, Passat, Opala e Maverick (os preferidos) e eles iam acelerar nas ruas.  

Se você é bem mais jovem do que eu – tenho 55 –, não faz ideia o quanto os anos 80 e 90 eram perigosos nas madrugadas das grandes cidades. Eu morava na zona sul de São Paulo, perto do Autódromo de Interlagos. Às sextas-feiras, qualquer caminho de volta para casa me punha na Marginal Pinheiros, a bordo do Fusca 1300 da minha mãe. Eu guiava com o olho no retrovisor, sempre na faixa da direita, pronto para me proteger de algum(ns) irresponsável(is) que viesse(m) desembestado(s) em algum racha.  

O Brasil dos anos 80 e 90 era repleto de locais de arrancada ou rachas por aí: na foto, da década de 80, centenas de pessoas assistem uma arrancada entre Ford Maverick e Chevrolet Opala mexidos. Isso em plena avenida de Londrina, no Paraná… (Foto: reprodução/Londrina Retrô)

Lembro de um caso famoso de um Chevrolet Omega mexido que acertou em cheio, a cerca de 200 km/h, a traseira de um Passat (a 70 km/h) nessa mesma Marginal Pinheiros, lá nos anos 90. Ambos os motoristas morreram.  

A receita dos primórdios 

A preparação daqueles carros era bem artesanal. Consistia em aumentar taxa de compressão e otimizar sistema de alimentação, optando por carburadores Weber 40 ou 44. Um pouco mais tarde, já nos anos 90, a onda passou a ser sobrealimentar os motores, principalmente os indefectíveis AP´s da linha VW.  

Os motores AP, da Volks, eram frequentemente preparados por aqueles que buscavam maior desempenho nos Gol, Voyage, Parati, Santana e afins (Foto: VW/divulgação)

Nesse período também começaram a surgir os primeiros carros importados. Como eles já chegavam por aqui “injetados”, a preparação era mais difícil. Mas brasileiro é criativo… Sem saber mexer no mapa original de injeção, os pioneiros na preparação voltavam no tempo e adaptavam carburadores ou chegavam a colocar bicos de injeção suplementares, instalados de forma arcaica por pressostatos de refrigeradores.  

Com a chegada dos importados com injeção eletrônica, começaram as adaptações para melhorar a performance dos carros (Foto: VW/divulgação)

Os personagens mudaram radicalmente. Os carburadores com giclês arrombados e/ou segundo estágio mecânico deram lugar às injeções remapeadas, ou mesmo sistemas totalmente programáveis, que substituem a original. Ninguém mais rebaixa cabeçote para aumentar taxa, até porque os atuais motores já são bem comprimidos.  

Hoje você capricha na admissão, com filtros de ar menos restritivos, faz remap da injeção/ignição e, eventualmente, investe no fluxo de gases de escape (downpipe), onde, na prática, o catalisador é retirado. Turbinas com pressão de mais de 1,2 bar eram raras. Hoje é mole trabalhar acima disso – há carros originais que trabalham com até 1,8 bar, como é o caso do Fiat Pulse Abarth. 

Antigamente, eram raros os casos de turbocompressor com mais de 1,2 bar de pressão. Hoje, um Fiat Pulse Abarth vem, de fábrica, com 1,8 bar… (Foto: Fiat/divulgação)

Incrível evolução 

Fico espantado em verificar o quanto a tecnologia de motores evoluiu nos últimos 40 anos. Você precisava ser artista pra tirar 90/100 cv de um motor de Fusca, originalmente com 55-60 cv. A linha AP turbinada (carburada) tinha 150-170 cv. Acima disso, alguma coisa sempre quebrava (embreagem, juntas homocinéticas, câmbio etc).  

No geral, os AP carburados suportavam cerca de 150 ou 170 cv, e acima disso costumavam quebrar (Foto: VW/divulgação)

Hoje qualquer carro premium original já desenvolve perto de 100 cv/litro. As preparações atuais tiram facilmente 150 cv/litro e com poucas modificações. Detalhe: os motores não quebram. VW, Chevrolet, Honda, Audi e BMW são as marcas que suscitam o maior número de carros preparados. 

Os Audi A3 Sedan são exemplo: rendem mais de 100 cv por litro (Foto: Audi/divulgação)

Você faz um remap Stage 1 numa BMW 320i, salta de 184 cv pra 250-260 cv e ganha um sedã nervoso, mas perfeitamente adequado para o uso no dia a dia. Nada de soluços na marcha-lenta ou buracos de aceleração em baixa.  

A receita é simples: um filtro de ar lavável, com menor restrição para admissão, um novo mapa de injeção e ignição (o remap propriamente dito) ou um piggyback (módulo que é conectado ao chicote original e que altera os dados enviados dos sensores à injeção original, permitindo maior pressão e, consequentemente, potência). O pacote é complementado, se você for cuidadoso, com a troca da válvula de prioridade, que originalmente é de plástico e, devido à maior pressão da turbina, requer uma metálica.  

Com um Stage 1, já dá para tirar quase 260 cv de um BMW Série 3 que, originalmente, rendia 184 cv (Foto: BMW/divulgação)

E ainda se comemora a eliminação daquele delay de aceleração que qualquer carro hoje possui para passar nos testes de emissões. Qualquer um. Até a Série 3. E o resultado disso? Na pista de Interlagos, por exemplo, em um Track Day, doutor, seu pacato 320i já vai frear no final da reta dos boxes a mais de 200 km/h. E isso a um custo médio de preparação de R$4 mil a R$5 mil.  

Gastando um pouco a mais (R$2 mil a R$2,5 mil), com o Stage 2 de remap, você acrescenta o downpipe no sistema de escape. E salta pra 280-285 cv. Mas tem que lembrar que a retirada do catalisador, além de mandar o nível de emissões pra cucuia, irá tornar seu carro irregular em um eventual retorno da inspeção veicular. Há opções de catalisadores esportivos, menos restritivos que os originais, que cumprem a função ambiental, mas custam bem caro. 

No caso do sedan de entrada da BMW, não há muito mais o que mexer para o Track Day: suspensões, direção…tudo costuma “aguentar o tranco” com méritos (Foto: BMW/divulgação)

Neste nível de preparação, o interessante, pelo menos no caso da modelo de entrada da BMW Série 3, é que o motorista não precisará se preocupar com muitos outros itens para adequá-lo ao Track Day. Nada a fazer em câmbio ou suspensão. Se for preciosista, o uso de amortecedores de competição, da Bilstein, por exemplo, vai diminuir o rolling nas curvas. Mas é opção. Os originais dão conta.  

É preciso ficar só atento aos freios. Com o uso mais severo do que jamais se usaria nas ruas, eles vão trabalhar em temperaturas muito altas. Há duas opções: você acelera por 2 ou 3 voltas, e dá as seguintes mais devagar para resfriar o sistema, ou parte para o up-grade no sistema, usando fluido de freios DOT 5 ou 5.1 e substituindo mangueiras lonadas por aeroquip´s, que possuem malha metálica e são mais resistentes às altas temperaturas. 

Ainda falando do BMW, os freios originais requerem atenção pela alta temperatura de funcionamento num Track Day, por exemplo (Foto: BMW/divulgação)

Os carros mais baratos… podem sair até mais caro 

Nos carros mais acessíveis, essa lógica já não se aplica. O ideal é retrabalhar… tudo. Há duas categorias famosas nos Track Days: a primeira é a turma que compra carros baratinhos, como Celta, Corsa e Gol, e acaba gastando até uma BMW 320i em swap de motor e câmbio, injeção própria pra uso em pista, suspensão, freios etc. Você vê vários Celta com motor 2.0 ou 2.2 16V de 160 ou 170 cv. Gasta-se R$15 mil no carro… e mais R$80 mil na preparação. 

Não são tão raros assim os carros pequenos com super preparações: caso do “Celtanás”, um Celta com motor 2.2 16v do Vectra (Foto: reprodução/@garagemdorods)

E a segunda turma é quem compra carros genuinamente mais velozes, tipo Ford Ka XR, Fiat Punto T-Jet, Renault Sandero RS ou Honda Civic Si.  

Esses esportivos de rua já mais animadinhos ganham, de acordo com o gosto do freguês, níveis distintos de preparação, estilo step by step: pneus e freios (R$5 mil a R$6 mil), molas e amortecedores (R$5 mil a R$7 mil), injeção própria pra pista (de R$8 mil a R$15 mil). Colocar uma gaiola e bancos concha vai deixar seu carro de Track Day realmente preparado e seguro, porém custando mais R$14 mil a R$16 mil. A conta não tem fim. 

Para esportivos mais apimentados, como o Renault Sandero R.S., existem diferentes níveis de preparação (Foto: Renault/divulgação)

Assim como não se esgota para quem ocasionalmente compra um BMW M3 ou um Audi RS6, que já saem de fábrica com mais de 500 cv (ou mais de 600 cv), e gasta cerca de meio milhão de reais para dobrar essa cavalaria. Há exemplos de carros como esses com 1.000 cv de potência, geralmente usados nas arrancadas. O cara adota nova injeção, coloca outra(s) turbina(s), usa bielas e pistões forjados, retrabalha cabeçote, capricha no intercooler, faz escape completo, mexe no câmbio… acredite: isso chega aos R$500 mil, sim.  

Sim, há quem ainda prepare um modelo feroz como o Audi RS6, gastando mais de R$500 mil para isso (Foto: Audi/divulgação)

Cada um sabe o tamanho da sua libido e o número de dígitos na conta corrente, não é?  

A Coluna do Edu, bem como o conteúdo nela publicado, é de responsabilidade de seu autor, e não necessariamente reflete a opinião do Carros&Garagem.

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Eduardo Pincigher é jornalista formado pela PUC-SP e atua no setor automotivo desde 1989, com passagens em diversas publicações e montadoras. Hoje trabalha como assessor de imprensa por intermédio de sua agência de comunicação.