Romi-Isetta, 68 anos: a epopeia do primeiro carro nacional

Vocês já imaginaram um carro com pouco menos de 2,30 m de comprimento, por menos de 1,40 m de largura, que tem uma porta única na frente? Pois essa é a descrição básica do primeiro carro brasileiro. Explico! Apesar de algumas marcas já montarem carros aqui no Brasil desde o início dos anos 1910 ou 1920, eles eram feitos sempre com componentes importados que se uniam em fábricas brasileiras. Pois bem, a Romi-Isetta é considerado o primeiro automóvel brasileiro pois foi lançada em 5 de setembro de 1956, há pouco mais de 68 anos, com um índice de nacionalização de 72% em peso. Ou seja, já era quase que totalmente produzido em solo nacional.  

O primeiro carro brasileiro, o Romi-Isetta era mais de 70% nacional (Foto: CEDOC Fundação Romi/Bestcars.com)

O lançamento da Romi-Isetta pode comemorar também os 68 anos de estreia do primeiro carro brasileiro. Fabricado em Santa Bárbara d’Oeste, interior do estado de São Paulo, o pequeno carrinho revela uma verdadeira epopeia antes do seu surgimento, que foi cumprida em tempo recorde: desde o acerto com os italianos do projeto original (Iso Isetta) até a apresentação da primeira unidade fabricada em terras tupiniquins, foram apenas onze meses. Um tempo curtíssimo para o desenvolvimento e lançamento de um novo produto que saía das pranchetas, especialmente nos idos dos anos 50! 

O processo teve início quando Carlos Chiti e seu sócio (e padrasto) Américo Emílio Romi, então responsáveis pela indústria de máquinas e tratores Romi, viram uma reportagem em uma revista italiana falando das maravilhas de um carro concebido pela Iso, indústria daquele país que se dedicava, entre outras coisas, a produção de veículos e motos. O carro, projetado pelo engenheiro aeronáutico Ermenegildo Pretti e seu assistente Pierluigi Raggi, era pequeno e com capacidade para duas pessoas, cujos conceitos básicos estavam na aeronáutica. A forma inicial de gota da carroceria mostrava claramente uma intenção aerodinâmica, e a porta única, que abria a frente do carrinho, remetia a porta dos aviões cargueiros. Claro que a grande área envidraçada e as janelas rentes a lataria também eram referências as aeronaves. 

O Iso Isetta havia sido mostrado na Itália em meados de 1953, mas Carlos e Emílio o conheceram algum tempo depois, imaginando que aquela proposta seria ideal para as condições do Brasil na época. Por isso, em junho de 1955, os dois viajaram para a Itália com a missão de ver de perto o carrinho e falar pessoalmente com o fundador e proprietário da Iso Autoveicoli, Renzo Rivolta. A Iso, para se ter uma ideia, era uma das maiores fabricantes de motocicletas da Europa, chegando inclusive a produzir carros para a Fórmula 1 (Iso Rivolta). Depois de todos os acertos comerciais, nos quais a indústria brasileira Romi deveria pagar 3% de cada carro vendido para a Iso, negócio fechado! 

A marca italiana garantia a cessão do projeto do Isetta aos brasileiros, bem como uma assistência de sua engenharia no futuro modelo nacional. A Romi logo ergueu um galpão de 25 mil m² no interior de SP, onde todo o processo de produção da Romi-Isetta ocorreu. O nome, claro, vem da junção das duas empresas (“Isetta” seria algo como “um pequeno Iso”). Enquanto isso, era terceirizada a montagem e pintura do monobloco do pequeno veículo, feitos por uma outra empresa, Tecnogeral, enquanto a Romi se encarregava de acoplar a mecânica e os periféricos ao carrinho (bancos, volante, faróis, janelas, frisos e afins). 

A carroceria de aço estampado era armada e pintada por outra empresa, a Tecnogeral (Foto: CEDOC Fundação Romi/Bestcars.com)

Com uma proposta de fazer até 25 km/l de gasolina, a Romi-Isetta era equipada com um motor monocilíndrico de dois tempos com 236 cm³ e 9,5 hp, atrelado a um câmbio de quatro marchas, conjunto muito semelhante ao que movia motocicletas Iso. Mas, como o motor ficava acoplado ao eixo traseiro, ele necessitava de uma ventoinha que captava ar da lateral traseira para arrefecer cilindro e cabeçote. Também não havia diferencial, o que explicava a bitola bem estreita na traseira, com as duas rodas de 10” quase juntas. Com esse conjunto, o Isetta atingia 85 km/h de velocidade máxima, mais do que suficiente para as vias brasileiras da época.  

O Romi-Isetta era indicado mais como um carro de passeios aos finais de semana, um segundo carro na família (Foto: Romi/divulgação)

Tinha como grandes novidades o teto-solar de série, os freios hidráulicos, e não a varão como a maioria dos carros, o limpador de parabrisas elétrico (e não a vácuo), enquanto seu sistema elétrico já era de 12 Volts, ao contrário dos 6V de grande parte dos automóveis dos anos 50. Além disso, para manter vivo seu sistema elétrico, ao invés do dínamo comum, a Romi-Isetta já usava uma espécie de alternador, bem mais eficiente, que era unido ao motor de arranque. E no projeto original, a Iso pensava na segurança dos passageiros nos desembarques: bastava parar de frente para a calçada e descer em segurança.  

Uma das vantagens da porta dianteira era parar de frente para a calçada, facilitando e garantindo mais segurança ao desembarque (Foto: Romi/divulgação)

Como pode ser visto, o carrinho inovava em vários itens, apesar da proposta urbana e simplista. Mas, também no evento de lançamento, aquele realizado em setembro de 1956, houve um rebuliço nunca antes visto no meio automotivo brasileiro: já com a primeira concessionária inaugurada no centro da cidade de São Paulo, as primeiras 16 unidades do Romi-Isetta foram desfilar juntas pela capital para que todos vissem o mais novo produto da nossa indústria. O passeio foi até o Palácio do Governo Estadual, onde o então governador Jânio Quadros e sua esposa puderam conhecer e desfrutar do primeiro carro da nossa indústria. 

O novo Isetta, pelo seu charme, logo virou sonho de consumo da classe média brasileira, e artistas e pessoas famosas eram vistos com frequência ao seu volante. Nos eventos de lançamento pelo país, incluindo uma caravana de 40 carros que fizeram um bate-e-volta de São Paulo ao Rio de Janeiro, também estavam presentes grandes nomes da época, como Eva Wilma, Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte, e até o Pelé chegou a ganhar um após a Copa do Mundo de 1958, quando foi campeão do mundo. Ainda assim, a Romi pretendia emplacá-lo como um segundo carro da família brasileira, sendo o automóvel nacional mais em conta da época.  

E a Romi-Isetta estava associada aos famosos: aqui, por exemplo, da esquerda para a direita, Dercy Gonçalves, Jânio Quadros e Danilo Bastos dentro do carrinho (Foto: CEDOC Fundação Romi/Bestcars.com)

Depois da estreia em 1956, ao longo de 1957 e 1958 o modelo passou por vários ajustes e melhorias: ganhou faróis maiores, nova calibração das suspensões, alguns itens extras como facho alto dos faróis, discretas mudanças na carroceria, como janelas maiores, e por aí vai. Porém, a principal alteração técnica veio mesmo em 1959, quando o motor de dois tempos e 9,5 hp da Iso italiana foi substituído, juntamente com o câmbio, por um trem-de-força alemão BMW. O novo motor tinha quatro tempos, apesar de monocilíndrico, 298 cm³ (0.3 litro) e 13 hp, o que garantia maior confiabilidade, potência e desempenho, sem contar que ficavam para trás as peculiaridades dos dois tempos (barulho e fumaça).  

Após mudanças e evoluções pontuais em 1957 e 1958, viria o motor BMW para 1959 (Foto: CEDOC Fundação Romi/Bestcars.com)

Só que, infelizmente, em 13 de abril 1961, a Romi-Isetta saiu de linha, como estava programado. Antes disso, formaram um grande estoque de carros para que as vendas seguissem até o final daquele ano, o que se cumpriu: o último foi comercializado no começo de dezembro. Como a capacidade produtiva da fábrica de Santa Bárbara d’Oeste era bem limitada, poucos Isetta foram feitos lá: menos de 5.000 unidades em quase cinco anos, de 1956 até 1961. Esse fato não tira o brilho de que o carrinho foi o primeiro automóvel considerado brasileiro, feito no nosso país. Tudo graças ao empreendedorismo de Américo Emílio e Carlos! 

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Jornalista na área automobilística há 50 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 69 anos, é casado e tem três filhos homens, de 22, 33 e 36 anos.