Rodovias x ferrovias: por que andamos de carro?

Foto de capa: Cristiano Oliveira/Flickr

Esta matéria foi publicada, originariamente, em 29 de novembro de 2016, no Best Car Web Site, a quem agradeço a preservação. Como a discussão entre usar ferrovias ou rodovias ainda está em pauta, esta e a próxima matérias são parte de uma nova série sobre o assunto. Rememoremos, pois.

Não há um dia em que, conversando sobre meios de transporte no Brasil, eu não ouça uma frase começando por “A opção do Estado pelo automóvel”. Como não gosto de verdades absolutas, fui investigar. Será que houve uma opção consciente pelo automóvel? Terá sido o GEIA (Grupo Executivo da Indústria automobilística) causa ou consequência?

A escolha pelo automóvel: fator histórico ou pressão do GEIA? (Foto: Subaru/divulgação)

O que terá vindo antes, a rodovia ou a ferrovia? Partindo do princípio de que o transporte sobre rodas tem mais de 10.000 anos e as ferrovias menos de 300, naturalmente que a rodovia veio antes, haja vista que no Império Romano já havia rodovias pavimentadas e aí está a via Ápia que não me deixa mentir. Contam que Adriano caminhava descalço sobre ela para atestar a qualidade do pavimento.

No Brasil, a primeira estrada pavimentada com macadame foi construída no fim do século XVIII, permitindo o tráfego de carroções até o trapiche de Santos. A ferrovia nasceu do fato de as primeiras máquinas a vapor serem grandes e pesadas demais para o material de pavimentação de então, sem contar a dificuldade de manobrar. As ferrovias resolveram tudo isso porque rodava aço sobre aço num espaço muito pequeno. Além disso, os trilhos garantiam que todos os carros do comboio fizessem exatamente o mesmo trajeto.

Como no trem era aço sobre aço, o espaço exigido para rodagem era pequeno (Foto: reprodução/internet)

Quando se queria velocidade, a rodovia continuava a opção na Europa, especialmente na França de Napoleão, em que, ao contrário dos Estados Unidos com o Poney Express, usavam-se minúsculas charretes para levar cartas e pequenos objetos.

No Novo Mundo a ferrovia foi instrumento de colonização, começando pela Union Pacific que, aproveitando o relevo favorável, a um só tempo, servia para ocupar o Meio-Oeste e eliminar o alimento dos índios, cortando a rota de migração dos búfalos. Ela era privada e o governo concedeu dez milhas para cada lado, tal que a terra pudesse ser concedida aos imigrantes que trabalhavam na construção.

No Brasil os trens tiveram seus dias de glória, primeiro, acompanhando a expansão da produção do café pelo que se chamava de Oeste Paulista, criando-se estradas como a Mogiana, construída pela família Prado, que atendia também o sul de Minas, e araraquarense que já percorriam terras privadas como as fazendas Reunidas e a Fazenda Ponte Pensa. Elas deram origem a cidades como Bebedouro, Rio Preto e Votuporanga.

Acompanhando o alto crescimento do café, os trens nacionais ajudaram a fundar diversas cidades (Foto: reprodução/massa.ind.br)

Modelo semelhante levou as ferrovias para o estado de Minas, primeiro como EF D. Pedro II, depois como EF Central do Brasil. No início do século XX, passou-se ao modelo americano de colonização em que o governo garantia um rendimento mínimo de 6% ao ano para a ferrovia, além de dar 15km para cada lado cuja ocupação produtiva forneceria a mercadoria a ser transportada pelos trens.

Aí nasceram a Sorocabana, a Noroeste, outras no Norte do Paraná e em direção de Porto Alegre. Nunca houve matança igual de índios. Até 1938, havia, na folha de pagamentos da Noroeste, o cardo de “bugreiro”, cuja função era desalojar índios mesmo que matando-os. No caso da São Paulo-Porto Alegre, a iniciativa resultou na guerra do contestado que ceifou milhares de vidas entre os ocupantes tradicionais da terra cuja posse foi contestada pelo governo federal, doando-a a Percifal Farquhar, empreendedor americano.

Duas coisas aconteceram. Primeiro, a qualidade das construções era a menor possível porque, o relevo brasileiro, com seus mares de morros, jamais favoreceu as ferrovias porque trens não sobem ladeiras. Um traçado racional exigiria a construção de pontes e túneis que jamais se realizaram, preferindo-se contornar os morros. As curvas requeriam bitola estreita. Isso aumentava as distâncias e diminuía a velocidade, assim como a capacidade de carga.

Os trens não sobem morros, então resta contorná-los (Foto: reprodução/minas.gov.br)

Segundo, por serem privadas, elas concorriam entre si e não havia entroncamentos, sendo o mais conhecido o de Bauru.  Clamava-se por construí-los como no projeto de ligação entre a Araraquarense, a Noroeste e a Sorocabana, saindo de Novo Horizonte, passando por Promissão e chegando a Marília, o que nunca saiu do papel por conta da concorrência privada. Não havia outro meio de interligá-las sem o uso de rodovias.

Em 1934, as rodovias públicas já se igualavam à malha ferroviária em distância. As pessoas preferiam usar as jardineiras para ir de uma cidade a outra e não se sujeitar à morosidade e imprevisibilidade dos trens. Aos poucos, construíram-se rodovias margeando as ferrovias, como foi a SP-300 (Mal. Rondom).

Antes da II Guerra, a discussão tornou-se política com rodoviaristas brigando com os ferroviaristas. Os primeiros defendiam a retificação das estradas de ferro com a consequente abertura de rodovias para alcançar o novo trajeto. Os segundos concordavam parcialmente com que eles precisavam ser melhorados, mas defendiam a construção de ramais indo das estações já existentes até o novo traçado para recomposição dos comboios.

Aí, o café entrou em decadência em São Paulo e Paraná, mudando-se para Minas. A cana, migrando do Nordeste para o Sudeste, tomou seu lugar. As ferrovias perderam sua função porque era muito mais barato levar a cana de caminhão para as usinas do que fazer um transbordo a mais para os trens. Os caminhões teriam de entrar na lavoura, levar a cana para um ponto de transbordo para que os trens a  levassem para as usinas, prática comum no Nordeste. Para ver como funcionava, recomendo o livro “A Usina” de José Lins do rego.

Ao invés do caminhão recolher a cana na plantação e levar até um trem, o próprio caminhão fazia todo o trabalho (Foto: DAF/divulgação)

Isso era notoriamente inviável para a escala de produção a que o sudeste se destinava. Ao mesmo tempo, a construção de rodovias mostrou-se oito vezes mais barata do que a de ferrovias, a ponto de os produtores de álcool e açúcar assumirem a abertura e manutenção das estradas vicinais.

Tudo pressionava a importação de caminhões que começaram a ser produzidos em Xerém (RJ), na Fábrica Nacional de Motores, a partir de 1949, com tecnologia Isotta Fraschini. Aí veio a construção de Brasília e era preciso levar material de construção para lá. A solução foi abrir a BR-050, continuação da Via Anhanguera, que já ia até Uberlândia, enquanto se prolongava a BR-040 que já ia do Rio até Belo Horizonte.

Os primeiros caminhões nacionais chegavam no final da década de 40, e algum tempo depois eles foram peças-chave no transporte de materiais para a construção de Brasília (Foto: FNM/divulgação)

A meu ver, o GEIA não fez outra coisa além de refletir uma tendência fortíssima. Isso só se agravou com a constante ameaça de internacionalização do nosso território por falta de ocupação. As estradas passaram a sair de Brasília em direção ao desconhecido, como foi o caso da Belém-Brasília. Como se tudo isso não bastasse, a cana teve sua área plantada decuplicada porque Cuba perdeu sua cota de exportação de açúcar para os Estados Unidos em 1961.

O Brasil despontou como a única fonte capaz de suprir a demanda interna e ainda abastecer o mercado norte-americano. Mais cana, mais rodovias; mais cana, maior a ocupação da fronteira agrícola para as commodities. A produção de automóveis é muito mais próxima do cidadão comum, daí chamar tanto a atenção, mas não foram eles que motivaram a construção de estradas. A rigor, não houve uma opção consciente pelas rodovias. Elas vieram por uma conjunção de fatores históricos, econômicos e de política interna e internacional.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. Dos seus 45 anos de vida profissional, dedicou 35 aos agronegócios, o que o levou a conhecer, virtualmente, todos os recantos do Brasil e suas mazelas. Em sua vida acadêmica de mais de 20 anos, lecionou as matérias de Custos, Orçamento, Operações Estruturadas, Controladoria, Metodologia Científica e Tópicos em Produção Científica. Orientou mais de 180 trabalhos de TCC e participou de, pelo menos, 250 bancas de graduação. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.