Prefeito, piloto e ladrão: Cadê a máscara e a arma?

Foto: reprodução/Coisas do Automobilismo

Era segundo semestre de 1994, mais precisamente entre setembro e outubro daquele ano. Eu, Douglas Mendonça, nessa época era editor técnico da revista Motor Show (depois, em 2007, acabei me tornando diretor de redação). Já se vão mais de 27 anos desses fatos, mas eles ainda são muito vivos em minha memória. O prefeito da cidade de São Paulo naquela época era Paulo Salim Maluf, que havia assumido o cargo em janeiro de 1993. Homem público muito conhecido no cenário político brasileiro, Paulo Maluf já havia até mesmo sido governador do Estado de São Paulo e chegou a candidatar-se a presidência da república no final da era militarista.

Pois bem, Paulo Maluf, além de político proeminente, era, assim como boa parte da população brasileira, apaixonado por carros. E, principalmente, os esportivos de alta performance. Tanto que, na época, possuía um pequeno acervo deles: um Porsche Kremer, um Jaguar Lister Le Mans e um Mitsubishi 3000 GT VR4. Como prefeito, tinha a sua disposição o autódromo de Interlagos.

Na garagem do Maluf, fazia presença um Mitsubishi 3000GT VR4 (Foto: Mitsubishi/divulgação)

Sabíamos que, pelo menos uma vez por semana, Paulo Maluf utilizava uma manhã ou uma tarde para se deliciar nas pistas do autódromo pilotando seus supercarros, arte que ele entendia e sabia fazer muito bem. Quando tivemos a oportunidade de andar no autódromo com ele ao volante, ficamos admirados com sua destreza e conhecimento do traçado da pista. Ele dirigia como um piloto profissional.

Graças a esses seus predicados de conhecer carros e dominar a arte de pilotar, nós, da Motor Show, o convidamos para avaliar os principais esportivos nacionais da época em um teste inédito no autódromo de Interlagos. Claro que ele topou de imediato. Separamos os esportivos nacionais que estavam em alta na época e pedimos ao prefeito Paulo Maluf que os avaliasse segundo alguns critérios determinados pela revista. Levamos para a pista Gol GTI, Tempra Turbo, Uno Turbo, Kadett GSi , Vectra GSi e Escort XR3. Marcamos a tal avaliação em um domingo pela manhã, quando o politico estaria livre dos seus compromissos politico e administrativos.

Foi aí que começaram os meus problemas. Meus dois filhos na época, o João Ricardo, com sete anos incompletos, e o André Luís, com cinco anos, ouviam direto pela TV ou pelo rádio críticas ao prefeito, chamando-o de ladrão pelo desvio de verbas públicas. E, em casa, ouviam comentários meus e da mãe deles quando víamos essas notícias, de que o prefeito deveria mesmo ser ladrão, pois a imprensa sempre o acusava disso. Era “Maluf ladrão” pra cá e “Maluf ladrão” para lá, e isso ficou gravado na cabeça dos moleques.

Vectra GSi era um dos integrantes do teste com o Maluf (Foto: Chevrolet/divulgação)

Como é que eu, como pai e jornalista profissional, poderia levar meus filhos para um lugar em que eles estariam perto de uma pessoa proeminente que poderia, a qualquer momento, ser chamada de ladrão pelas crianças? A preocupação era grande. Tive uma longa conversa com os dois no sábado que antecedeu o evento com o Maluf: “Não considerem o que vocês escutam e o que o papai e a mamãe falam sobre o Maluf. Ele só vai poder ser chamado de ladrão quando a Justiça assim provar. Por isso, não digam a ele que nem o papai e nem a mamãe o chamam de ladrão em casa. Ele pode até ser ladrão, mas enquanto não for provado, não podemos dizer nada”. As crianças não entenderam bem o que eu disse, mas sabiam que na presença dele, não poderiam dizer que nós o considerávamos ladrão. Uma tremenda saia justa!

No domingo, fomos eu com as duas crianças e a mãe delas para o autódromo de Interlagos para desenvolver meu trabalho jornalístico. A responsabilidade da execução da reportagem estava comigo e com o meu parceiro Eduardo Pincigher, na época, o outro editor. Chegamos ao autódromo, todos os seis carros limpos e alinhados, fotógrafos e equipe nos seus devidos lugares, aguardávamos apenas a chegada do prefeito e de seu filho que o acompanhava.

Assim como eu levei meus filhos e a mãe deles, outros profissionais que estavam trabalhando aproveitaram o domingo e levaram os seus familiares. O Eduardo Pincigher, por exemplo, levou seu saudoso pai, Sr. Edson Pincigher, sempre solícito e querendo colaborar com tudo e todos.

Eu, confesso, estava tenso com algum comentário fora de hora que um dos meus filhos pudessem fazer ao prefeito. E, adivinhem? O prefeito Paulo Maluf, logo que chegou, simpatizou com as crianças. Depois de cumprimentar os presentes de maneira simpática, como cabe a um bom político, ele pegou os dois no colo e pediu a mãe deles se ele poderia levá-los a dar uma volta completa no autódromo com o “Porsche do titio Maluf”, como ele se referia ao seu Kremer. Ainda frisou: “Não se preocupe, minha senhora, sou responsável e darei essa volta bem devagar para que as crianças aproveitem o passeio”.

Antes do início dos testes, Maluf levou meus filhos para um passeio a bordo do seu Porsche Kremer. Entrei em pânico (Foto: reprodução/Lexicar Brasil)

Não é preciso dizer que eu entrei em pânico. Só Deus sabe o que aqueles dois iriam dizer ao prefeito Maluf durante a tal volta. Já imaginei Paulo Maluf voltando irado, dizendo que o teste estava encerrado mesmo antes de começar, porque as crianças haviam contado que eu e a mãe deles o chamávamos de ladrão! Mas não. Os dois ficaram de boca calada e não disseram nada ao “titio Maluf”.

Depois de tudo pronto, o teste foi iniciado e fui aos meus afazeres de jornalista. O pai do Eduardo foi, então, distrair os meninos. Não demorou muito tempo e o Seu Edson veio me trazer o André no colo às gargalhadas. Me contou que o meu filho, no esplendor dos seus 5 anos de idade (hoje com quase 32 anos), disse pra ele de maneira bem séria: “Meu pai sempre fala em casa que o Maluf é ladrão, mas fiquei prestando atenção nele e não consegui ver nem o revólver e nem a máscara que ele usa para roubar. Onde será que ele guarda a arma e a máscara?”

Na santa ignorância dos meninos, se ele era ladrão, tinha que ter máscara preta e arma na mão (Foto: reprodução/Freepik)

Quanta inocência! Para a criança, ladrão que era ladrão tinha que ter arma e máscara preta que cobrisse parte do rosto, e acho que foi assim que ele idealizou o prefeito. Se decepcionou ao encontrar um homem simpático, gentil, que o levou para passear de Porsche em Interlagos e, cada vez que terminava a avaliação de um dos carros para a revista, pegava-o no colo e passeava com ele pelos boxes. Onde é que estava, então, aquele ladrão ruim e mascarado que tira o dinheiro das pessoas apontando uma arma? Esse ele não viu, mas ficou pensando onde estariam os acessórios do tal criminoso. Bons tempos em que ladrões eram só esses armados e mascarados.

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Jornalista na área automobilística há 48 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e na Revista Motor Show por 24 anos, de onde foi diretor de redação de 2007 até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Ensino de Engenharia Paulista (IEEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e os Mil Quilômetros de Brasília em 2004, além de ter participado em competições de várias categorias do automobilismo brasileiro. Tem 67 anos, é casado e tem três filhos homens, de 20, 31 e 34 anos.